sábado, 29 de novembro de 2014
REGRESSO AO LOCAL DO CRIME 46
Emergiu da noite, não, eram dois, sim, emergiram da noite, mas como se ela não existisse, até àquele momento eu estava sentado sozinho na esplanada com as cadeiras empilhadas e arrumadas, a noite e ninguém, estava sentado numa cadeira branca de abrir e fechar, a única que não fora presa pela corrente, fumava cachimbo, «Irish Oak», o tabaco que outrora Graham Greene me mandara com um cachimbo «Peterson», uma oferta por tê-lo acompanhado, eu ou a Clara ou nós os dois, pela cidade ainda alvoroçada, por tê-lo apresentado às novas personalidades, ter-lhe aberto as portas das instituições e dos clubes revolucionários, habituei-me ao «Irish Oak» nem sempre fácil de arranjar, nem mesmo no «free shop» dos aeroportos, estou sentado e penso tabaco, tabaco, o fumar divino, paz e sossego, stop, Virgem Maria, arco do céu, se eu quisesse ouviria o mar, as gaivotas estão a dormir, eis senão quando emergiu da noite à noite, mas afinal eram dois, ele sentou-se no muro e disse boa noite, o que em Portugal não significa que se vá dormir já, mas algo como noite acordada e que seja boa, que a vida continue na escuridão.
Interromperam o meu fluxo silencioso de palavras e o navegar em ideias aproximadamente formadas pelas palavras, tal como agora interrompi a frase anterior que não tinha fim. Cumprimentei-o, pois, com essa mesma boa noite à portuguesa, procurei e no bolso encontro o isqueiro e esperei, esperei enquanto aguardava. Sentou-se no muro. Ela ficou ao pé, afastou-se. O cachimbo era excelente, embora seja evidente que um cachimbo aceso pela segunda vez deixa de ser tão cheiroso e saboroso. «Irish Oak». Na tampa da caixinha redonda de lata um carvalho verde, um quadro que no escuro tem de ser imaginado. Ao longe as luzes baças de um barco de pescadores. A oscilarem no ar incerto. Como numa narrativa.
- Rouba-se muito por aqui, aventurou ele.
- Onde, aqui?
- Em Portugal.
Era uma frase muito sintética. Inusitadamente sintética. Eu não estava acostumado a isso.
- Fui seu aluno, senhor professor, disse depois.
No dia anterior eu tinha estado com os pescadores. Tinha percebido que toda a pesca é um conflito. Com o mar, com as redes, com a organização do próprio trabalho, com o sistema da entreajuda.
- Professor de quê? Perguntei baixinho, devagar, sem quase ter perguntado. Algures, alguém pôs uma motocicleta em marcha.
- Foi há muito tempo.
Ninguém me dirá nada de novo, afirmou Zaratustra. Não quero ouvir nada de novo, eu. Mas quem é o eu?. Quem é Zaratustra? Cada dia nos aproxima mais. Mas aproxima de quem? De quê?
Não tinham onde dormir. Dormiram no meu quartinho. Coisas que se curam, que não se curam. Eu tinha tempo. O tempo ainda me pertencia.
Jorge Listopad, «Em Chinatown com a Rosa», Gótica, Lisboa 2001.
Colaboração de Gin-Tonic
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