quarta-feira, 26 de maio de 2010

MÁRIO CASTRIM E O ZIP-ZIP

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As variedades caiam na rotina, viviam na rotina e para a rotina. Por isso, a rotina não as fixava. Para não variar, as variedades avariavam-se de semana a semana. Sem espírito de missão não pode haver espírito de emissão. Quando muito, haverá o de micção. Dequalquer maneira. E ai de quem vive no r-do-chão...

Dizia-se que era por falta de dinheiro (do tal dinheiro que não faz a felicidade mas proporciona a facilidade...); que era falta de meios técnicos (embora houvesse - e quanto! - a técnica dos "meios"...); que era a podreza do mercado (embora fosse mais evidente o mercado da pobreza).

Dizia-se tudo isto - e eis que tudo isto desaba com a primeira emissão de uma nova rubrica de variedades, "Zip" de seu nome. "Zip" que ainda antes de ontem não possuía nenhum significado - e se carregou de significado a partir de ontem.

De súbito prova-se que era possível o humor; que era possível refrescar as variedades, que era possível a convivência da inteligência e do riso. Com "Zop", inicia-se na Televisão portuguesa, no 13º ano da sua existência, a escalada da naturalidade. Subiu-se um degrau. E embora a escada seja longa, subsiste a realidade: subiu-se um degrau...

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Quer, passadas que foram as duas horas de emissão, om público não haja dado a mínima prova de cansaço, eis a prova cabal da "novidade" de "Zip". O público não se fatigou como poderia temer-se perante a duração de alguns quadros, nomeadamente a entrevista com Almada e a presença do toureiro a haver Manuel Valente. O primeiro, salvou-se pela presença do próprio Almada; o segundo salvou-se pelo trabalho de equipa em que o jovem (oxalá não ex-futuro) toureiro colaborou com todo o fulgor da sua... inexperiência.

3

(A propósito, e entre parêntesis: "Zip" terá de evitar o desgradável aproveitamento das pessoas apanhadas de improviso, no fulgor da sua... inexperiência ou da sua inconsciência. A utilização das pessoas, a transformação delas em objecto, paga-se caro. Volta-se, em geral, contra os utentes das pessoas. É a história quem nos ensina isto, e não apenas a história do espectáculo, mas a outra, a que se afundou no vício solitário do H maiúsculo. Se o "Zip" quer manter-se de pé na plataforma da simpatia popular, não deve permitir que o seu humor provoque um riso com auréola de remorso. Que ninguém tenha vergona de ter rido -eis o caminho que "Zip" deve seguir se, como digo, quiser manter-se de pé. Sim, porque viver deitado - é fácil! E cómodo. Os tapetes que o digam).

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Se não a equipa completa do PBX, foi o espírito do PBX que se transferiu para o palco do Villaret. Espírito de PBX no que aí se entende por facilidade de comunicação, pelo sentido da reportagem, pela presença ao vivo das pessoas, pela voz da rua. Isso foi notório no quadro da exposição de Almada Negreiros em plena rua, expressivamente saudada por Rogério Paulo. Ainda bem, portanto, que a colabração Carlos Cruz-Fialho Gouveia não se destruiu.

"Zip", no entanto, pode definir-se como sendo o espírito de PBX+"Horizonte" de Baptista Rosa+o humor de Solnado. PBXHS - eis a fórmula química bem capaz de produzir viva reacção no meio televisivo.

Como bem se percebe, o humor de Solnado foi essencial para o êxito do primeiro "Zip". O seu humor não fabricado, o comentário vivo ou a mímica conhecedora do terreno que pisa. Nós sabemos como a televisão gasta os artistas. Sabemos como os envelhece depressa. Sabemos que a capacidade de renovação dos artistas não pode competir com a capacidade de desgaste do pequeno visor. Até quando poderá Raul Solnado resistir a tamanha usura, mesmo tendo em conta o seu excepcional poder de invenção? Não o sei, ninguém o sabe. A verdade é que os os artistas vivem das reservas que souberam acumular. Deixar que as suas reservas se renovem - é um conselho do grande Malakowski. Durante algumas semanas, Solnado viverá das suas reservas. E depois? Depois começa o grande perigo, começa o grande perigo, começa a grande vontade de fugir. Começam as mãos nas ilhargas do jogador de futebol: cansado.

O problema resolver-se-á, ou atenuar-se-á com a montagem da máquina adequada.

Bob Hope pode ser, nesse aspecto, exemplo vivo. As anedotas com que faz rir (boçalmente, claro) o americano médio são produzidas não por ele - mas pela "sua" máquina.

É urgente, para já, que Solnado de férias ao truque do telefone. Cada artista pode trazer consigo o pântano em que se afunde. O pântano pode chamar-se telefone.

5

Dos intervenientes neste primeiro "Zip" pouco há a dizer: foi um "Zip" em rodagem...

Mariema imitou sofrivelmente a Simone e nada mais. Adriano Correia de Oliveira valeu, especialmente, como valor de presença, quer como um símbolo de renovação de processos. A sua primeira canção, alentejana de origem, saiu muito empobrecida de estilização. Ana Faria é uma esperança: deixou um rasto de juventude e sadio entendimento das coisas. Os telespectadores gostariam de tornar a ouvi-la. Célia de Sousa pouco mais fez além do sorriso inicial e da distribuição dos prémios. Nuno Martins foi a actuação destoante deste "Zip": má dicção, falta de naturalidade, nenhum sentido das oportunidades. Um "braços cruzados" e está tudo dito. Nuno Nazaré bem podia ter deixado a viola para quem tivesse nisso algum futuro...

6

A realização de Luís Andrade utilizou rodriguinhos de ritmos camamários já muito usados e, portanto, muito capazes de fatigar o telespectador. Por outro lado, não se incorporou no trabalho de equipa. Houve desfasmentos notórios, saltitou demasiado. Não conseguiu ligar as "faenas" - e quando isso acontece, o resultado não é brilhante. O seu melhor período foi o de Almada. Teve o instinto do valor: agarrou-se à máscara do artista, daí só o arrancaram à força e nunca para seu bem.

7

Trata-se, como já disse, de um "Zip" em rodagem. Natural é que venha a aprender com a sua experiência. Cono sucede nas "revistas", a "première" saiu demasiado extensa. Não ultrapassar os 90 minutos como no futebol, parece-me boa norma. Aliás, um bom talhe na abertura já ganha tempo precioso...

8

Para terminar, um voto: que o "Zip", para usar a expressão de Manuel valente, "seja capaz de parar os pés diante do touro". É desses que o público gosta.

PS

Na vida há destas coisas, como diz o compadre que todos temos. O programa que João Villaret foi das poucas coisas vivas e populares que aconteceram na Televisão Portuguesa. Passaram-se muitos anos antes que surgisse qualquer coisa que pudesse dar-nos oportunidade de falar de vida e de popularidade. Parece que essa oportunidade existe agora - e a ela encontra-se ligado ainda o nome de "Villaret". Não há dúvida: "Zip" nasceu sob bom signo.

Mário Castrim, "Diário de Lisboa", 27 de Maio de 1969

7 comentários:

josé disse...

Tenho vários Diários de Lisboa de época, por causa das críticas de tv do Castrim.

Comunista, escrevia bem e direccionado. Suponho que terá sido censurado, mas pouco.

Se formos a ler hoje em dia a crítica de tv, temos que admitir que hoje há maior censura auto.-infligida pela ignorância e conveniência em não desagradar a certos estratos.

Portanto, em 1969, em Portugal, começava a haver renovação na tv e as figuras de oposição iam lá.

O Portugal de Caetano já não era o de Salazar.

Num país de ditadura, onde é que se pode ter outro exemplo?

josé disse...

Tenho vários Diários de Lisboa de época, por causa das críticas de tv do Castrim.

Comunista, escrevia bem e direccionado. Suponho que terá sido censurado, mas pouco.

Se formos a ler hoje em dia a crítica de tv, temos que admitir que hoje há maior censura auto.-infligida pela ignorância e conveniência em não desagradar a certos estratos.

Portanto, em 1969, em Portugal, começava a haver renovação na tv e as figuras de oposição iam lá.

O Portugal de Caetano já não era o de Salazar.

Num país de ditadura, onde é que se pode ter outro exemplo?

Anónimo disse...

Mas Mário Castrim (PCP) era tão sectário, tão sectário que era conhecido pelo sectário-geral.

JC disse...

O Zip-Zip ilustra mtº bem aquilo a que se poderá chamar o "valor da oportunidade". O seu sucesso é mtº potenciado por uma época de crescimento económico e urbano do país, de formação de uma cxlasse média já com alguma expressão económica e social, de alguma (pouca) abertura política mas de maior abertura social e de costumes. Tb de uma enorme efeverescência cultural em cuja base está o que afirmei em cima. Pela 1ª vez, essa classe média em crescimento e as novas ideias de que era portadora, tiveram expressão a nível televisivo (basta ver a programação da altura que o LT publica noutro "post"). E o país reconheceu-se nisso. Foi premonitório do fim da ditadura...

Anónimo disse...

Esse é mais um dos mitos urbanos que crescem e florescem à custa da ignorância de quem não passou anos a ler o Castrim todos os dias.

Rato disse...

Lembro-me de que o Mário Castrim era mais lido pela sua acutilância de escrita e não pela sua filiação partidária. Escreveu muita "bojarda", é certo, mas era um crítico sempre tido em consideração.

Camilo disse...

Rato... 100%!!!