sexta-feira, 24 de abril de 2020

SALAS DE CINEMA DE OUTROS TEMPOS – SAVANNAH, GEORGIA


Existe um preconceito que tende a considerar os americanos um povo primitivo e pouco iletrado, que
não tem uma relação com a Cultura – assim mesmo, com cê grande – como aquela que nós, europeus,
temos.

O que me oferece dizer é que, ao longo de quatro prolongadas viagens que já fiz pelos Estados Unidos da América, nunca me apercebi que a Cultura fosse tratada a pontapé. Bem pelo contrário...

Alguns dos melhores museus do Mundo estão na América, e não apenas em Nova Iorque, Washington, Los Angeles ou São Francisco, mas também em cidades mais pequenas.

O país dispõe de inúmeras organizações federais, estaduais e privadas de renome no domínio da Cultura.

A “Smithsonian”, por exemplo, é uma das mais prestigiadas a nível mundial.

É certo que a América não tem um património cultural de excelência como o da Europa, mas agarram-se com unhas e dentes ao que têm e preservam-no cuidadosamente.

Um exemplo desse património mais antigo que conheço relativamente bem são as velhas Missões
espanholas californianas do Séc. XVIII que existem entre San Francisco e San Diego, que vi num
excelente estado de conservação.

Em todos os Estados, grandes casas senhoriais do tempo colonial e dos primórdios da Independência,
inseridas nos seus espaços circundantes, foram preservadas e estão abertas aos visitantes.

Por todo o lado parques temáticos permitem-nos viajar no tempo e conhecer um pouco melhor a Cultura e as condições de vida das diversas gerações pioneiras, e dos próprios Índios, como vi em Natchez.

No que respeita às chamadas “belezas naturais”, elas são sobejamente conhecidas. São 62 Parques
Naturais Nacionais pouco tocados pelo Homem, de uma beleza de cortar a respiração, proporcionando inesquecíveis experiências de harmonia e de comunhão com a Natureza. E se pensarmos nos Parques Estaduais, este número aumenta consideravelmente...

Dir-me-ão que muitos desses espaços parecem ser demasiado destinados ao turismo... E Versailles, os
castelos do Loire, o Louvre, a Tate Gallery ou os Uffizi, não o são também...?

É verdade que, quando dela necessitamos, temos alguma dificuldade em encontrar uma boa livraria, mas isso parece um (mau...) ar dos tempos e não algo específico dos Estados Unidos...

As próprias cidades nem sempre são feitas de grandes arranha-céus. Existem verdadeiras “cidades-
museu”, como St. Augustine, Charleston, Natchez ou Savannah, para só vos referir aquelas que mais
recentemente visitei. E é um prazer passear pelas ruas dessas cidades e ver a diversidade de estilos que oferecem ao viajante, em edifícios muito antigos criteriosamente recuperados. Puxando a brasa à minha sardinha, não imaginam a maravilha que é encontrar, em excelente estado de conservação, velhas salas de Cinema centenárias em quase todos os lugares por onde passamos.

Quando paro defronte delas e as olho parecem querer falar comigo e contar-me as suas histórias... O
“glamour” que viveram nos tempos áureos, quando o Cinema era belo... As alegrias, as tristezas e os
dramas que deram a ver... O que riram, o que choraram, o que cantaram e dançaram, descalços no
parque, à chuva ou sobre as nuvens... A excitação da sala cheia e a agonia de vê-la vazia...

Parecem querer contar-me de tudo o que o vento já levou... Dos esplendores na relva, das condessas
descalças, de tudo o que o Céu permite, das lendas dos beijos perdidos, dos filhos da noite, dos rebeldes sem causa e de todos os que só Deus sabe quanto amaram...

Mas da história delas eu nada sei. Quando as vejo estão quase sempre fechadas e nem as entranhas lhes consigo vislumbrar... Só à noite, quando regresso ao quarto do hotel, posso ir à “net” tentar perceber por onde passei...

Com regularidade irei enviar-vos fotografias de algumas dessas Salas de Cinema, com informações acerca da sua história, nos casos em que as consegui obter.


E vamos começar hoje com o belíssimo “Lucas Theatre”, em Savannah, na Geórgia.

Foi mandado construir por um senhor chamado Arthur Lucas, abastado proprietário de uma grande cadeia de Salas de Teatro, e foi inaugurado, com pompa e circunstância, há quase 100 anos, no dia 26 de Dezembro de 1921. Foi uma sessão dupla, com a curta “Hard Luck”, com Buster Keaton, e “Camille” como filme principal, com a diva Alla Nazimova e o divo Rudolfo Valentino, realizado por um tal Ray C. Smallwood de que não reza a História.

À sua época, com 1237 lugares sentados, era o cineteatro mais luxuoso de Savannah e o primeiro a
possuir ar condicionado.

Resistiu durante mais de cinco décadas, mas em meados dos anos 70, com o enorme sucesso dos
primeiros “blockbusters” e a progressiva passagem do Cinema para as grandes superfícies comerciais
com as suas salas “multiplex”, foi obrigada a encerrar as suas portas, tal como sucedeu a muitas outras salas por esse Mundo fora. O último filme que passou foi “O Exorcista”.

Dez anos mais tarde foi criada uma associação não lucrativa – “The Lucas Theatre of the Arts” - que tinha como objectivo angariar fundos para a recuperação do edifício, o que ainda levaria muitos anos a concretizar.

Mas isto está tudo ligado, e um grande impulso para a recuperação acabou por ser dado por Clint
Eastwood ao fazer nessa sala, ainda em obras, a festa de encerramento das filmagens de “Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal”, de que ainda há bem pouco vos falei, e ao doar à Associação os lucros
obtidos nesse evento.

A recuperação foi concluída e a nova abertura teve lugar no dia 1 de Dezembro de 2000, com “E Tudo o Vento Levou”, como não podia deixar de ser...

Hoje o “Lucas Theatre” é um espaço multifacetado.

A sua exploração é gerida pelo “Savannah College of Arts and Design”, que fica lá mesmo ao lado, e
promove a exibição de teatro clássico e de vanguarda, de eventos musicais variados e, naturalmente, de Cinema, com particular atenção na divulgação dos grandes clássicos do cinema americano.

É, igualmente, palco de realização de grandes festivais anuais, como o “Savannah Film Fest”, o
“Savannah Philharmonic” e o “Savannah Music Festival”.

Reabilitação conseguida com sucesso, portanto, o que nem sempre acontece nestes casos...

Mas não estaríamos em Savannah se não houvesse, pelo meio, uma história de fantasmas...

Há quem garanta que este teatro está assombrado, que se vêm estranhas sombras e se ouve bater palmas quando está vazio, e o “Lucas Theatre” é paragem obrigatória do “Ghost City Tours”...

Tudo terá acontecido em 1928, dizem, quando um grupo de “gangsters”, provavelmente porque o
proprietário do teatro não lhes pagou a “comissão”, avançou a tiro pelo meio de uma multidão em fila de espera e matou pelas costas o pobre empregado da bilheteira, que procurava fugir, quedando-se o seu fantasma para sempre nos corredores do teatro.

Parece que os jornais da época não registaram qualquer acontecimento parecido com este, mas já se sabe o que acontece na América quando a lenda se sobrepõe à realidade...

Mas eu gosto desta história...

Apetece-me é acrescentar-lhe outros fantasmas muito meus, aqueles que morreram nas mais belas mortes do Cinema...

Thomas Mitchel, apoiado por Cary Grant, a dar uma última passa no cigarro no “Only Angels Have
Wings”...

Louis Jourdan a deixar-se matar em duelo, depois de ter lido a carta de uma desconhecida...

Margaret Sullavan a abrir a janela e a roubar um último sopro de vida em “Three Comrades”...

O soldadinho de “A Time to Love and a Time to Die” a puxar pela última vez da carta que transportava bem junto ao coração e a vê-la fugir por entre as águas...

Sterling Hayden estendido sobre a relva com que tanto sonhara, com o cavalo a beijar-lhe a face, em “The Asphalt Jungle” James Mason a entrar no mar e a libertar, de vez, Mrs. Norman Maine, no “A Star is Born”, do Cukor, e Pandora a fazer o mesmo, por amor ao holandês voador...

Aqueles que os próprios fantasmas se encarregaram de vir buscar, como Mrs. Muir, Jeanette Macdonald no “Maytime” e o velho marido nas duas versões de “Smilin’ Through”...

E como fantasmas não escolhem antigas ou novas vagas, lá estará, também, o Belmondo de “A Bout de Soufle”, qual James Cagney dos tempos modernos, a ser baleado pelas costas e a andar aos esses pela rua fora antes de se estatelar no chão e levar o dedo aos lábios pela última vez, como Bogard...

E também por lá andarão aqueles que morreram de mãos dadas, como os amantes crucificados do
Mizoguchi, Joel McCrea e Virginia Mayo nesse tão belo e tão esquecido “Colorado Territory” ou
Jennifer Jones e Gregory Peck, depois de se destruírem mutuamente, no “Duel in the Sun”...

E ainda Helen Hayes nos braços de Gary Cooper, no “Farewell to Arms” do Borzage, naquela que hoje me apetece dizer que é a mais bela morte no Cinema...

E como os anjos também serão admitidos, não faltará por lá aquele que tão galhardamente ganhou as
suas asas ao levar James Stewart a perceber que a Vida é, na verdade, uma coisa Maravilhosa...

Tanta e tão boa gente que nos encantou e emocionou ao longo da Vida lá deve estar...

Porque talvez que o Cinema não passe disso mesmo: bons fantasmas que povoam o nosso imaginário e nos ajudam a viver...

E é por isso que me comove sempre tanto ver um velho Cinema ainda vivo...

Texto de Luís Mira

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