sexta-feira, 25 de abril de 2014

"GRÂNDOLA": OTELO SARAIVA DE CARVALHO


Em Março de 1974, quando afanosamente me lancei na elaboração da "Ordem de Operações" e na preparação do que iria ser o 25 de Abril, fixei-me na ideia de conseguir lançar, a partir de uma estação emissora de rádio cuja potência de antena permite a cobertura, em simultâneo, de todo o país, uma senha que, ouvida por todos os meus camaradas do MFA que ansiosamente a aguardariam, constituísse o sinal de arranque para a operação "Viragem Histórica".

E se em vez de uma palavra, uma frase, um corte de 30 segundos na emissão do programa, fosse a senha uma canção?

Escolhida esta hipótese, que considerei como a mais romântica, mais emblemática e mais motivadora, era para mim incontestável que a tal senha/canção pertencesse ao cancioneiro do Zeca Afonso, sendo "Traz Outro Amigo também" ou "Venham Mais Cinco" as minhas preferências.

Se a obra do Zeca estivesse toda ela indexada pela censura, procuraria uma canção de outro qualquer dos nossos excelentes cantores de intervenção, mais inócua, nem que fosse "O Tango dos Pequeno-Burgueses", do José Jorge Letria.

Finalmente, da aproximação e do diálogo feliz entre gente do MFA e da produção do programa "Limite" da Rádio Renascença, surgiu, alvissarada, a hipótese de utilização de "Grândola, Vila Morena" como senha de confirmação e irreversibilidade da "Viragem Histórica" para todos os "Capitães de Abril".

O assumido e intransigente espírito de missão dos militares empenhados no 25 de Abril, levou-os a recusarem receber quaisquer honrarias, ganhos ou privilégios em consequência imediata da acção vitoriosa do MFA.

Pela minha parte, aqui me confesso, não resisti a aceitar um privilégio que considerei irrecusável: o de ter tido a honra e o prazer de conhecer pessoalmente, estimar como um irmão e admirar como ser humano ímpar, para lá da voz belíssima e do génio como autor de músicas e canções notáveis de intervenção política, o José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos.

Não me perguntem como, quando, em que circunstâncias o conheci, pois sinto que ele fez sempre parte, ocupando o Top Ten, da minha extensa lista de amigos.

Já com o Adriano foi diferente. Dele conhecia o timbre magnífico da voz que me enantava como a "Trova do vento que Passa", do Manuel Alegre, e o destaque da sua intervenção na luta contra  a ditadura marçalazarista.

Mas alguns meses depois do 25 de Abril, Silva Graça, amigo meu dos bancos do Liceu Laurentino, comunicou-me que o Adriano, conhecedor dessa ligação, lhe tinha pedido para conseguir um encontro comigo.

Juntou-se a fome com a vontade de comer e, levado pelo Silva Graça ao apartamento do Adriano, nos Olivais, ali tive com ele uma longa, divertida, distendida conversa.

E falámos de tanta coisa! Inclusivé de política! E foi enorme o meu espanto quando, ao afirmar-lhe, de forma autêntica mas em estilo que hoje soa a "pré-cavaquista", que perante as atribuladas vivências do PREC tinha uma pena imensa de, sendo apenas um militar, pouco ou nada saber de política, o vejo abrir os braços para me envolver, rindo, num "quebra-ossos" e dizer-me, feliz, "tu não é um político, meu querido Otelo. Tu és um politicão!".

Que me lembre, foi a única vez em que estivémos juntos.

Do Zeca, guardo com enorme carinho a obra biográfica sobre ele escrita por um amigo comum que ele me ofereceu quando em Junho 86, pela última vez, me visitou em Caxias, onde eu continuava preso, e na qual apôs uma dedicatória simples, mas enorme: "Para ti, amigo maior que o pensamento".

E o livro lá está na estante, em lugar de honra, ao lado de uma foto linda, de corpo inteiro, do meu querido Zeca Afonso.

Otelo Saraiva de Carvalho, in "Provas de Contacto", Cultureprint, 2012

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