Há 50 anos, a 18 de Setembro de 1970, nascia o MRPP.
Com excepção do MRPP, toda - repito, toda - a restante constelação de grupos marxistas-leninistas que viria a surgir em Portugal “descendeu”, por via direta ou enviezada, de um primeiro núcleo de dissidência “de esquerda” do PCP que foi o CMLP - Comité Marxista-Leninista Português.
Um dos companheiros de Álvaro Cunhal na fuga de Peniche, Francisco Martins Rodrigues, protagonizou essa histórica dissidência que, em Portugal, tal como aconteceu em outros países, refletiu a conflitualidade sino-soviética, que se estabeleceu após o XX Congresso do PCUS, que consagrou a desestalinização.
O organograma dos MLs, como então chamávamos a um conjunto infinito de organizações que por aí andava, era de uma imensa complexidade. Se isso já confundia, e muito, os cidadãos portugueses no pós-25 de abril, a quem era muito difícil perceber a diferença entre o PCP-ML “fação Mendes” e o PCP-ML “fação Vilar”, bem mais confusos estavam, nos tempos da Revolução de 1974, os estrangeiros que nos procuravam, fosse por mero “turismo” político, fosse para reportar profissionalmente a “Revolução dos Cravos”.
O José Rebelo, à época correspondente do “Le Monde”, em Portugal, recordar-se-á de uma longa e “pedagógica” conversa a que me chamou, num quarto do Hotel Mundial, com esse “monstro” do jornalismo político francês que era Marcel Niedergang, a quem eu procurei detalhar as diferenças e importância real de todas aquelas siglas. À época, eu era um “expert” autodidata nessa área.
E recordo-me bem da surpresa do celebrado autor dos “Les Vingt Amériques Latines” quando lhe expliquei que o grupo ML mais “na moda”, que era o MRPP, que enchia as paredes de Lisboa com vistosos murais, pouco ou nada tinha a ver com a origem dos restantes grupos, em especial que não recebia qualquer apoio chinês (nem da Albânia), nem político nem em espécie.
O MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) foi o único dos movimentos ML que surgiu por uma via diferente. Lembro-me bem de ter detetado, no auge das polémicas emergentes nas reuniões oposicionistas no Palácio Fronteira, no caminho para as “eleições” do “marcelismo” que tiveram lugar em outubro de 1969, uma linha política “de novo tipo” (para usar um termo leninista), cujo discurso já então me soava a diferente do dos MLs tradicionais.
Daí viria a surgir, como mais tarde se apurou, muito assente na Faculdade de Direito de Lisboa, aquilo que seria designada por EDE (Esquerda Democrática Estudantil), uma organizaçao que, durante muitos anos, o MRPP considerava insultuoso que pudesse ser identificado como sendo a sua origem. Mas foi.
Era gente que já tinha andado pelo PCP, com atividade nas lutas universitárias e anti-coloniais, na esmagadora maioria dos casos estudantes e alguns escassos operários, numa época em que ter estes últimos nas hostes de qualquer grupo dava imenso “cachet” revolucionário. O MR, como simplificadamente nos referíamos então ao grupo, lá acabaria por ter os seus operários, e até alguma residual presença sindical.
O PCP viria a ser o principal ódio de estimação do MRPP. Nisso não se diferenciava muito dos restantes ML, que igualmente contestavam que o partido de Cunhal pudesse reivindicar o estatuto de ser o “partido comunista”. Mas enquanto alguns MLs já se consideravam a si próprios essa mesma “vanguarda da classe operária”, o MRPP afirmava que ainda não estavam criadas as condições, “objetivas e subjetivas”, para dar o passo para a criação do “verdadeiro partido da classe operária”.
Após ter sido criado em 1970, o MRPP foi progressivamente ganhando força junto de jovens setores intelectuais, bem como de uma juventude universitária, e mesmo liceal, que, “à esquerda” do PCP, se opunha à guerra colonial. O movimento não apenas se tornou na “bête noire” dos comunistas de Álvaro Cunhal como entraria em rápido confronto com os restantes ML, um conflito que chegou a assumir aspetos fisicamente violentos, anos mais tarde. Tinha então o seu famoso jornal “Luta Popular” e, como órgão teórico, o “Bandeira Vermelha” (sou proprietário de um exemplar do seu nº 1). Além disso, as suas múltiplas declinações sectoriais mantinham outros órgãos clandestinos de propaganda.
Por alturas do 25 de abril, o MRPP estava no auge das suas ações de rua. Manteve-se na clandestinidade, como algumas outras organizações congéneres, e confontrou-se com a ala do MFA que mais próximo estava do PCP. Fez então uma aliança tática com setores menos radicais das Forças Armadas e, sempre na sua lógica anti-PCP, assumiu uma prática política que o levou a muito polémicas ligações com setores conservadores (aliás, nada que o PCP-ML “fação Vilar” não tivesse também praticado). No período mais tenso do PREC de 1975, o MRPP esteve do lado do PS e do então PPD, “to say the least”.
Depois, ao ter sido impedido, por decisão política, de concorrer à Assembleia Constituinte, o MRPP iniciou o que viria a ser um percurso de crescente declínio. Daria ainda, no entanto, o passo político de se transformar formalmente em partido - o chamado PCTP-MRPP.
Desde 1970, o líder incontestado do MRPP, e do partido em que este se transformaria, havia sido sempre Arnaldo Matos, um madeirense, licenciado em Direito, que advogou em Lisboa. Chegou a estar afastado alguns anos do partido, mas acabaria por regressar à respetiva liderança. Até à sua recente morte, manteve um registo de expressão discursiva que se colou à caricatura que a história política portuguesa dele guarda.
Os antigos militantes do MRPP tiveram destinos muito diversos. Como regra que pode ter a suas exceções, mas que a meu ver resiste bem ao teste, pode dizer-se que quem entrou para o MRPP antes do 25 de abril, quando a prioridade da sua luta era a ditadura e a recusa da guerra colonial, está hoje politicamente à esquerda, como é, por exemplo, o caso de Fernando Rosas. Quem se ligou ao movimento após o 25 de abril, e nele foi aculturado na luta contra o PCP, acabou, em geral, à direita. O exemplo mais flagrante deste último grupo de pessoas será Durão Barroso.
Uma coisa é certa: dos partidos que por aí andam, ainda que alguns num registo quase apenas formal, só emergindo nos períodos eleitorais, aparentemente para poderem manter a subvenção financeira estatal anual, o PCTP-MRPP é hoje o segundo mais antigo, depois do PCP. O PS só viria a surgir em 1973.
Francisco Seixas da Costa
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