terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O ROSTO DE EMMETT TILL


Os assassinos de Emmett                                                                                                                          Chegaram sem avisar                                                                                                                  Mascando cacos de vidro                                                                                                                      Com suas caras de cal

Vinicius de Moraes – Blues para Emmett Louis Till

Andar por uma estrada secundária e deserta no Mississippi profundo, numa tarde feia, cinzenta e chuvosa, é como caminhar por um cenário fantasmagórico onde, a todo o momento, um qualquer zombie se pode atravessar no nosso caminho e acenar com os braços, como quem nos pede ajuda…

Numa clareira à beira da estrada, na curva de um rio ou no arvoredo lá ao fundo, um negro pode ter sido espancado, deitado às águas ou pendurado no ramo mais alto de uma árvore… 

Era bom que estivesse a exagerar, mas não estou…

Basta ouvir ou ler as declarações de quem viveu nestes sítios, há muitos anos atrás.

Toda a gente conhece alguém que um dia partiu de casa para não mais voltar… E os que tiveram a sorte de regressar vieram com as costas abertas a chicote, pernas e braços partidos e a cara feita num bolo…

Poucas dessas histórias viram a luz do dia.

Por vergonha ou medo de represálias, ficaram encerradas no interior da humilhação de quem sofreu na pele, ou na dor de quem viu partir, para sempre, os seus ente-queridos.

Mas a história que hoje vos vou contar viu a luz do dia. Muitos desejaram que não tivesse visto, mas viu…

Corria o ano de 1955 e Emmet Till era um rapaz de Chicago, de 14 anos e órfão de pai, que, como quase todos os anos, tinha vindo passar uns dias de férias em Agosto a casa do seu tio-avô Reverendo Moses Wright, no lugarejo de Money, no Mississippi.

Como todos os rapazes da cidade que gostam de se exibir na província, Emmett era extrovertido e gabarolas. Uma tarde, após terem andado na apanha do algodão, ele e mais uns quantos amigos dirigiram-se a uma mercearia local (a Bryant’s Grocery) para comprarem alguns doces e beberem refrescos. À saída, num ato de pura exibição para os amigos, Emmett terá assobiado à empregada de serviço na mercearia, uma tal Carolyn Bryant, de 21 anos, mulher do proprietário da loja.

Assustados com o que viram e conhecedores das regras locais em que um negro não deve tomar a iniciativa de se dirigir a uma mulher branca que esteja sozinha, e muito menos enviar-lhe um piropo através de um assobio, os amigos de Emmett desataram a fugir para as suas casas, enquanto que este se dirigiu, calmamente, para casa do seu tio-avô, como se nada fosse.

Durante uns dias nada se passou, mas Carolyn Bryant fizera, entretanto, queixa do miúdo ao seu marido e este havia-lhe garantido que lhe iria dar uma lição de boas maneiras…

Quatro dias após o sucedido, o marido, Roy Bryant, e o seu meio-irmão, J. W. Milam, irromperam  pela casa do tio-avô de Emmett e levaram o miúdo à força, dizendo que lhe iriam dar apenas umas quantas  vergastadas, para ele aprender como é que se deve tratar uma mulher branca…

E agora vou abreviar, porque a história está bem contada em vários sítios na Internet e quero poupá-los aos pormenores mais horrorosos…


Dir-vos-ei, apenas, que o perigoso Emmet Till, de 14 anos, foi levado para um celeiro em Glendora e aí morto à pancada. O seu crânio foi esmagado, o seu rosto foi desfigurado a murro e com o tiro de uma caçadeira, e o que restou do seu corpo foi enfiado num saco, enrolado com arame farpado a um velho ventilador de 35 kg dum moinho de algodão, para fazer peso, e deitado ao rio Tallahatchie, vindo a ser descoberto por um pescador vários dias mais tarde.

O corpo do miúdo ficou irreconhecível e só pôde ser identificado porque ainda tinha num dedo um velho anel do seu pai, com as suas iniciais, que a mãe lhe tinha dado antes de partir para casa do seu tio-avô.

As autoridades locais fizeram pressão para o corpo fosse enterrado no Mississippi, o mais rapidamente possível, mas a mãe de Emmett opôs-se e conseguiu que ele fosse transferido para Chicago.

E mais…

Contrariando todos os conselhos que lhe tinham sido dados, bem como todas as pressões que tinha sofrido, mandou abrir o caixão para que todos pudessem ver bem o corpo despedaçado e o rosto desfigurado do seu filho. Jornalistas vieram, como vieram, também, milhares de pessoas durante quatro dias, para prestar ao rapaz uma última homenagem.

E Emmet Till tornou-se uma questão nacional.

Mas a história, infelizmente, não acaba aqui.
Os dois suspeitos foram presos e acusados.

E houve julgamento, claro está…

E rápido…

Naqueles tempos, nos Estados Unidos, havia sempre julgamento…

Uma palhaçada de julgamento! 

Contrariando todas as provas irrefutáveis que foram apresentadas pela acusação, um júri constituído apenas por brancos considerou os acusados “not guilty” dos crimes de rapto e assassinato. Foram necessários apenas 67 minutos para chegarem a essa conclusão.

Em boa verdade, o que é que esperavam…? De que valia a vida de um pobre rapaz de 14 anos, no Mississippi…? Como já não bastasse o incómodo de terem de simular um julgamento, ainda queriam que dois puros homens de raça branca fossem acusados e aprisionados…?

Mas, desculpem-me, a história ainda não acaba aqui…

Como nos EUA, após ter sido julgado e ilibado,  ninguém pode ser acusado duas vezes pelo mesmo crime, quatro meses depois do julgamento os acusados venderam a sua história à revista “Look” por quatro mil dólares (mil e quinhentos para cada um mais mil para o advogado…) e contaram, despudoradamente e com todos os pormenores, a forma como tinham efetuado o rapto e o assassinato do miúdo. O título do artigo – “The Shocking Story of an Approved Killing” – diz tudo…

Mas a história ainda não vai acabar aqui…

Após o funeral, a mãe de Emmet Till, Mamie Bradley, enviou um telegrama ao presidente Eisenhower solicitando a sua intervenção no sentido de repor a justiça no assassinato do seu filho.

Não obteve qualquer resposta…

50 anos mais tarde alguns documentos do processo foram divulgados pelo FBI. Entre eles encontra-se uma Circular da Casa Branca redigida por um tal Max Rabb, Conselheiro de Eisenhower para as minorias, na qual se dizia que a mãe de Emmett Till era um mero instrumento dos comunistas e que “qualquer reconhecimento perante ela poderia ser utilizado em prol da causa comunista neste país…”.

Era necessário, portanto, que o caso fosse esquecido o mais depressa possível, como chegou a pedir um jornal do Mississippi, o Jackson Daily News.

Mas o caso não foi esquecido…

William Faulkner, pouco avezo a manifestações públicas em situações desta natureza, escreveu um artigo violento e acusador num jornal local…

Um escritor negro do Mississippi, Jerry W. ward Jr., dedicou-lhe um poema, “Don’t Be Fourteen in Mississipi”, que pode ser lido na Net.

Vinicius de Moraes dedicou-lhe, também, um poema em 1962, “Blues para Emmett Louis Till”, que Toquinho musicou. 

Para terminar em beleza, a virgem ofendida, Carolyn Bryant, acabou por confessar em 2007 que tudo o que havia dito em tribunal acerca do comportamento de Emmet Till era mentira, e a única ofensa que o miúdo lhe tinha feito fora, efetivamente, o assobio…

Não só no âmbito da população negra, mas também junto de um público branco mais esclarecido, o “affaire” Emmet Till foi um escândalo que ajudou a perceber como era a vida e a justiça no Sul profundo, e gerou um movimento de condenação e solidariedade de grandes proporções, a nível nacional.

Poucos meses depois, a 1 de Dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco, tendo sido presa. Com Emmet Till ainda na memória de todos, a reação a este ato iria marcar, para sempre, a história da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, mas isso é história que vos contarei noutra oportunidade.

Como vos disse, o dia estava feio, chuvoso e cinzento quando cheguei a Money, no Mississippi, que é um lugarejo no meio de nenhures com meia-dúzia de casas nas redondezas.

O letreiro do “Mississippi Freedom Trail” não deixava qualquer dúvida. Era ali que se situava a Bryant’s Grocery e fora ali que tudo tinha começado.

Mas olhava-se à volta e não se via nada, a não ser uma velha bomba de gasolina que eu sabia muito bem que não era a mercearia que procurava, porque já a tinha visto em fotografias.

Bryan’s Grocery, nem vê-la…


Paul Theroux, no seu livro “Sul Profundo” que aqui há tempos mencionei, já nos tinha alertado.  A Bryant’s Grocery estava no topo da lista dos “Dez Mais Ameaçados Locais Históricos do Mississippi”, por duas razões: primeiro, porque do edifício inicial mais não restava do que algumas paredes em estado periclitante, cobertas por ervas e arbustos, naquilo a que ele próprio chamou “a estrutura mais fantasmagórica que vira em todas as minhas viagens pelo Sul”; em segundo, porque talvez que aos próprios habitantes locais interessasse mais deixar cair o que restava, para que essa má memória desaparecesse, para sempre, das suas vidas… 

Lá muito perto, também as águas do rio Tallahatchie, para onde há sessenta e três anos atrás fora lançado o corpo de Emmett Till, corriam feias, tristes e silenciosas, como se também elas sentissem vergonha por se terem visto envolvidas nesta triste história…

Este texto já vai longo e peço-vos desculpa pelo incómodo.

Mas não vos quero deixar sem vos convidar ao visionamento de um pequeno filme de sete minutos que encontrei no YouTube.

Dir-me-ão que não há muita diferença entre aquilo que lá está dito e o que vos acabei de contar…
Mas existe uma diferença muito importante:  é que lá se vê o rosto de Emmet Till.

Também eu, tal como a sua mãe há 63 anos, fiz questão que vissem e fixassem bem esse rosto…


Num Mundo em geral, e numa Europa em particular, em que a xenofobia, a intolerância e o racismo avançam a passos de gigante, é cada vez mais importante vermos e não esquecermos o rosto de Emmett Till.

PS:

Como vos referi no texto, a história de Emmett Till está profusamente documentada na Net. O livro de Paul Theroux (págs 245 a 258) contém informações importantes, nomeadamente no que respeita ao Relatório do FBI de 2004, que não me lembro de ter visto em mais lado nenhum.

Texto e imagens de Luís Mira

2 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo artigo!

mario santos disse...

muito obrigado por nos dar a conhecer esta história violenta