sexta-feira, 17 de novembro de 2017
VOU DAR DE BEBER À DOR
Gosta de capas de discos.
Servem-lhe para contar histórias, as suas e as de outros.
Sabe que o dono do kioske não gosta de fado, mas por uma história que leu, teve de ir desenterrar esta capa, que já por aqui passou, mas, agora a história é outra.
Foi naquele cinzento tempo, em que decorreu a convalescença de António de Oliveira Salazar, depois de, num abençoado dia de sol de Agosto, presente o calista Hilário, corria o ano de 1968, se ter mandado para cima de uma cadeira de lona, ter batido com a cabeça nas pedras da esplanada do Forte de Santo António, no Estoril, , enquanto, mansamente, as águas do Tejo se dirigiam para a foz.
Manuel Marques, barbeiro de Salazar: tinha a mania de se sentar atirando-se para cima das cadeiras, opinião corroborada por gente próxima e por diversos médicos, que explicam que, aos 79 anos, e com uma vida sedentária como era a sua, por falta de musculatura nas pernas, teria tendência de se sentar num movimento de quem se deixa cair.
A queda obrigou, dias depois, a uma complicada intervenção cirúrgica e, dadas incapacidades várias, que houvesse a necessidade de o substituir na chefia do governo por Marcelo Caetano, para infernal desespero dos ultras do regime.
Augusto Abelaira no seu livro "A Cidade das Flores", publicado em 1969:
Quando morrer, comem-se uns aos outros, pai. Ele não tem um único discípulo de categoria, nem sequer soube criar discípulos com uma certa inteligência. Salvo um, talvez, mas ninguém no partido gosta dele. E seria ainda pior para nós, é mais esperto. Manteria o fascismo, mas disfarçando-o…
Salazar veio a morrer a 28 de Julho de 1970.
Os dias que mediaram entre a queda e a morte, são de pura farsa trágica.
Entre outros episódios, «deu» uma entrevista ao jornal parisiense "L’Aurore" em que se mostrava convencido de que continuava a ser presidente do conselho, um grupo de devotas senhoras, que diariamente acudiam ao Hospital da Cruz Vermelha, tentaram arrancar dos médicos uma autorização para levarem Salazar a Fátima, nas eleições de 1969, dentro de um carro, rodeado por Dona Maria e uma enfermeira, depositou o seu voto na urna que, expressamente, fôra levada à presença de sua excelência.
Bom, agora história que aqui o trouxe, - já não era sem tempo! - tirada de "Música, Minha Companheira Desde Os Ouvidos da Infância", de José Gomes Ferreira:
O João José Cochofel resolveu, há dias, ir ao Valentim de Carvalho, comprar as Flores da Música. E quem havia ele de encontrar lá? O Bissaia Barreto que o João conhece desde criança. Estava a comprar discos da Amália Rodrigues. Fadinhos. Dar de beber à dor.
Ficou um pouco atarantado e desculpou-se:
Estou a escolher discos para um doentinho.
O João José supôs logo que seriam para o Salazar, mas disfarçou:
É para algum doente seu em Coimbra, não?
O Bibi decidiu então pôr as cartas na mesa. E abriu-se todo:
- Tu bem sabes para quem são. São para “ele”.
Mas não resistiu a acrescentar como vaga desculpa:
- Bem, não são bem para ele. Mas para as enfermeiras. Para desanuviar o ambiente – coitadas!
Este Dr. Bissaia Barreto é o mesmo que, segundo Jacinto Baptista no seu livro "Caminhos para uma Revolução", vivia esperançado num Salazar eterno:
Um repórter do Diário Popular falou esta manhã, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha, onde Salazar está hospitalizado, com o Prof. Bissaia Barreto, que diariamente visita o enfermo. E começou por recolher esta declaração:
- O Senhor Presidente dormiu muito bem, passou uma noite muito calma, com um sono reparador. De manhã, o seu espírito encontrava-se desanuviado. Conhece as pessoas que entram no seu quarto, profere o nome das pessoas conhecidas, a sua memória responde mesmo à evocação de factos passados.
O repórter pergunta depois ao Prof. Bissaia Barreto se esta recuperação permitia manter esperanças de ser dada alta, em breve, a Salazar. Respondeu (fé inabalável):
- Tenho a certeza de que pode ainda levar uma vida normal e escolher o seu próprio modo de vida. Tenho a certeza. O tempo não interessa em casos destes. O que interessa é que ele regresse à vida.
Mais tarde, em entrevista à Televisão, simultaneamente recolhida pelos jornais, Bissaia Barreto declarava:
- O Senhor Presidente estará, em breve, em condições de se ocupara da sua vida pessoal e da vida que interessa à Nação.
Por Amália, por José Gomes Ferreira, voltará um destes dias para uma outra história, que nada terá a ver com o ditador de Santa Comba.
Texto de Gin-Tonic
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário