quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

RATO ESCREVE SOBRE VER CINEMA


Aqui há alguns anos existia uma rúbrica no Cartaz do jornal Expresso que eu tinha o hábito de ler todas as semanas, por achar curiosa embora terrivelmente frustrante: chamava-se “as sessões contínuas”, onde se teciam comentários às salas de exibição a que hoje em dia temos direito.

Porquê frustrante? Pela simples razão de, por mais voltas que se dêem, por mais salas que se frequentem, o resultado é quase sempre o mesmo.

Tirando a melhor ou pior qualidade de projecção, mais pipoca ou menos pipoca, a ida a uma sessão de cinema nos tempos actuais tem sempre o sabor da massificação, do colectivo no mau sentido.

E a maior parte das vezes dá-nos a sensação de entrarmos para quartos (vá lá, suites...) de um qualquer hotel de boa categoria, com óptimos corredores alcatifados. Existe conforto, sim senhor, mas a magia, o espectáculo, são coisas ausentes, que se perderam algures no tempo.

E, no entanto, ainda me lembro do prazer que era ir ao cinema, independentemente da qualidade do filme a que se ia assistir.

Lisboa, no início da década de 70, não chegava a ter vinte salas de estreia - numa pequena viagem da Baixa para as Avenidas Novas, era o Condes e o Eden, o Tivoli e o S. Jorge, o Castil, o Mundial, o Monumental com o seu Satélite, o Apolo 70 e o Berna, o Império e o seu Estúdio, o Roxy, o Londres, Roma, Vox e Alvalade, o Estúdio 444 e o Caleidoscópio (algumas outras salas, como o Quarteto ou o Nimas, chegaram já um pouco mais tarde, depois de Abril de 74).

Nem uma destas salas resistiu à passagem dos anos, embora continuem vivas nas nossas memórias. E eram todas salas de espectáculo (não apenas de exibição, como hoje), grandes e espaçosas, as mais antigas com a sua plateia e o seu balcão (12$50 e 25$00, lembram-se?).

Ah, e um pormenor de grande importância: a maioria tinha cortinados, longos e espessos, que, imagine-se, abriam-se e fechavam-se, majestosamente, no início e no fim da cerimónia (lembram-se do filme do Coppola, "One From The Heart / Do Fundo do Coração"? Pois, era isso mesmo, a magia...).

Curiosamente, as salas tinham a sua própria programação, o mesmo filme não se estreava em mais de um local ao mesmo tempo; e isso tinha uma certa importância, conferia a cada sala a sua personalidade, a sua identidade.

E quanto à sessão, propriamente dita, as diferenças revelavam-se mesmo antes de se entrar para a sala escura: normalmente havia bichas maiores do que as de hoje (videos e dvds eram palavras desconhecidas, pelo que as pessoas eram obrigadas a sair de casa) mas no fim da espera era reconfortante poder-se falar, directamente e em tom normal, com a pessoa que vendia os bilhetes (e não aos berros e para um pedaço de vidro, como hoje acontece).

Depois era a recolha do programa grátis (que sempre servia de pretexto para se dar qualquer coisa ao arrumador) com os dados mais ou menos completos do filme em cartaz e às vezes também com comentários críticos (lembram-se do bom trabalho que o Lauro António fazia no Apolo 70?).

Finalmente o início da sessão, que quase sempre começava por um magazine de actualidades ("Assim vai o mundo..."), um desenho animado e/ou um documentário e as apresentações das próximas estreias. Primeiro intervalo (algumas salas foram-no abolindo), antes do início do filme de fundo e, antes da segunda parte, um novo intervalo. Estes interregnos serviam, acredite-se, para visitar o bar, tecer comentários sobre o filme, ir à casa de banho...

Para concluir, uma última referência a outra vertente das sessões: sala que se prezasse tinha sempre as suas sessões clássicas (normalmente ao fim da tarde ou à meia-noite) onde, por preços mais reduzidos, se podiam visualizar outros filmes, velhas glórias do passado, de que habitualmente só se tinha ouvido falar ou lido em revistas e livros de cinema.

Ah, e no Verão havia mesmo férias para as estreias - era a época das reposições, que servia de igual modo para preencher lacunas antigas.

Enfim, outros tempos, outras sessões contínuas...

Texto e imagem de Rato

9 comentários:

DANIEL BACELAR disse...

Caros LUIS E RATÃO
Dêm-me sómente alguns segundos para respirar fundo e reter alguma lágrima teimosa.
Realmente são demasiadas recordações de uma juventude em que havia pouca coisa para nos divertirmos,mas pelo menos sabíamos tirar partido das nossa limitações.
Luis,a tua descrição é um "mimo" e a fotografia do nosso "ratâo", uma pequena maravilha com o célebre cartaz do "E tudo o vento levou".
Desculpem estes comentários "lamechas",mas acredito que que os nossos "bloguistas" mais novos,compreenderão o culto que fazemos destas recordações,pois daqui a uns anos,encontrar-se-ão também na mesma situação e espero que nessa altura haja um outro LUIS qualquer e o seu BLOG,para falar e recordar esses pequenos apontamentos que vos são gratos
ESPERO!!!!!

DANIEL BACELAR disse...

Caro RATÃO
O SEU A SEU DONO!!!
Só agora,quando fui ler e "curtir" mais uma vêz este teu apontamento sobre os cinemas de Lisboa e não só,reparei que tanto o texto como a fotografia eram teus.
Como diria o nosso amigo prof.MARCELO (com quem estivèmos há dois dias na habitual tertúlia no VÁ-VÁ, VÁ-VADIANDO mais 46 "furiosos habitués" visto que ficou gente á porta, devido á nossa habitual desorganização ,houve pessoas que se esqueceram de fazer a "reservazinha" .
Obrigado ao LUIS,por nos permitir trazer aqui todas estas recordações no seu BLOG.

DANIEL BACELAR disse...

OH RATÃO
Desculpa lá mais uma vêz,mas são 08.00h da manhã e isto ainda não está a "funcionar muto bem"
Esqueci-me de te dar a classificação do prof.Marcelo!!!!
CLARO 20 VALORES REBENTANDO A ESCALA PARA 21

Rato disse...

Obrigado, Daniel, mas fico contente só por te ter avivado algumas (boas) memórias.
A fotografia foi tirada em 1983 (já quase um quarto de século!), semanas antes da demolição-crime ter tido início. Pena não me ter lembrado de fazer o mesmo com as fachadas das outras salas. A propósito, encontraste alguma coisa na coleção da "Lisboa Desaparecida"?

ié-ié disse...

Exacto, o seu a seu dono! O "mimo" do texto - que é mesmo um "mimo" - é da autoria do Ratão, como está duplamente referenciado, no título e na assinatura.

Bem gostaria eu de escrever um texto assim!

Mas o Daniel já se corrigiu, portanto está tudo bem! Por mim, também peço desculpa ao Rato.

LT

DANIEL BACELAR disse...

Caro LUIS e RATÃO
Para mim num BLOG ,o que o torna interessante e enriquece é a participação desinteressada dos seus leitores e participantes.
Daí este BLOG ser talvêz um dos melhores senão o melhor em termos de actualização (pausa para o Luis limpar a "baba")e temas apresentados claro está com a participação dos "bloguistas".
Quanto aos nove volumes da "lisboa desaparecida",prometo que vou fazer uma pesquisa cuidada,e em breve apresentarei resultados.
Um grande abraço a todos e participem,isto não pode morrer!!!

Rato disse...

Hoje aproveitei a hora do almoço para folhear a coleção na Bulhosa do Oeiras Parque e deparei-me com algumas fotografias no 7º volume, mas apenas referentes a cinemas de bairro. Tem lá uma magnífica do cinema Europa (2ª versão) de Campo de Ourique - essa tem lá paciência, Daniel, mas vais ter de ma enviar. É que era a minha sala favorita para as reprises; e depois da sessão dava sempre um salto à discoteca que ficava mais à frente ao virar da esquina (hélas, também já desaparecida!)

ié-ié disse...

O cinema Europa foi inaugurado no dia 27 de Março de 1966. Os 850 "fauteils" da sala são os melhores de Lisboa. A cabine de projecção está equipada com quatro máquinas, das quais duas do modelo DP-70, o mais recente da Philips. Ecrã gigante de 16 metros. O cinema abriu com o II Festival de Cinema da Casa da Imprensa. Para se ver como eram difíceis aqueles tempos - cheiram-me novas discussões - entre os VIPs da ianuguração contava-se o comandante-geral da PSP, general Marques de Oliveira. Para quê?

LT

Cristina Tomé disse...

Olá!!!

Aproveito para congratular o autor deste blog, que serve de autêntica viagem no tempo...um tempo que não vivi (só nasci em 1978), mas que tenho a certeza que tudo era vivido com mais emoção do que agora nesta época consumista que vivemos.
Eu também estou a construir um blog sobre as antigas salas de cinema, principalmente de Lisboa e Porto, porque acho indecente a maneira como estes monumentos de arquitectura estão a ser tratados (o caso do Paris, aqui referido, é o mais emblemático e revoltante). O meu blog serve para recordar essas salas, que muitas pessoas da minha geração e até de gerações seguintes nem sequer ouviram falar. É um trabalho moroso, visto que recolher fotografias e um pouco da história destas salas não é tarefa fácil, mas dá-me um gozo e orgulho mostrar às pessoas o que de anteriormente existia em termo de arquitectura em Portugal.

Aqui fica a morada do meu blog: http://cinemasparaiso.blogspot.com/

Espero pela tua visita e comentários