segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

"EM ÓRBITA"


"Revenge" é um instrumental dos Kinks e foi o primeiro indicativo do "Em Órbita", do Rádio Clube Português, em1965.

Mas não é uma co-autoria de Jimmy Page, mas sim de Larry Page (que chegou a ser produtor/manager dos Kinks).

Ainda Jimmy Page: é também um mito urbano a sua participação em "You Really Got Me", o primeiro grande êxito dos Kinks e por muitos considerada a primeira manifestação musical de heavy metal.

No dia 1 de Abril de 1965, um pouco depois das sete horas da tarde, Pedro Castelo anunciava, após alguns acordes do instrumental “Revenge”, dos Kinks, composto por Ray Davies e Larry Page na frequência modulada (uma novidade) do Rádio Clube Português, “Em Órbita”: “um programa feito por nós e dito por mim”.

Não sei se a frase foi dita logo na abertura do primeiro programa ou mais tarde por Cândido Mota o seu apresentador nos anos subsequentes, mas sei que se tornou frequente, ao longo dos anos, e é isso que importa.

Uma frase que funcionava como se de uma assinatura, uma síntese se tratasse, encapsulando em si um novo conceito ou parte dele: não estávamos perante um programa que promovia “estrelas da rádio” (muito comuns na época), quer fossem os seus autores ou o apresentador (na altura dizia-se “locutor”), mas anunciava, isso sim, uma certa radicalidade, um corte com a tradição de falsa intimidade com o ouvinte, tantas vezes expressa, pelos chamados “locutores da voz doce” e suas companheiras de emissão, no “amigos ouvintes, muito boa noite; somos a vossa companhia durante estes próximos minutos”.

Radicalidade, intransigência, fidelidade aos princípios definidos pelos seus autores (Jorge Gil, José Gil, João Manuel Alexandre e Pedro Albergaria, entre outros) sem qualquer tentativa de ir “ao encontro do gosto do público”, era este o conceito, o que só era “permitido” por se tratar da rede de frequência modulada, algo que, ao tempo, era uma novidade que só um número limitado de receptores possuía, o que a tornava numa frequência elitista e o custo da respectiva emissão, e da publicidade que a mantinha, substancialmente mais baixos e acessíveis a um maior número de anunciantes.

Aliás, até no caso da publicidade o “Em Órbita” foi de certo modo pioneiro, pois, se bem lembro, tinha um patrocínio único seleccionado pelos próprios autores do programa com “spots” adaptados ao seu “mood and tone”, o que, longe de ser um acaso, era essencial à apresentação da sua unidade conceptual.

Mas a sua marca mais identificativa foi o facto de ter sido o primeiro programa de rádio a apenas “passar”, de modo consistente e intransigente no gosto, música popular anglo-americana, "rock & roll", a música que mudou o mundo e era considerada na altura, no Portugal ultraconservador da ditadura, como “música e batuque de pretos” (sim, no Portugal “multirracial”), pecado original que conduzia directamente à depravação dos costumes, diluição da moral e delinquência juvenis.

Aliás, o que era curioso verificar era o facto da esquerda comunista e a ditadura salazarista terem perante o "rock & roll" uma atitude idêntica, embora com propostas diferenciadas: a música de variedades, para o regime, e a canção de texto francesa para a esquerda comunista.

Essa radicalidade, esse “desprezo” (chame-mo-lhe assim) pelo gosto das maiorias substituído pelo gosto dos seus autores, essa “arrogância” assumida (sim, não há mal nenhum nisso) ajudou a formar e a formatar o gosto musical (e não só) de uma geração, mas foi muito para além disso: contribuiu para a criação, em muitos adolescentes de então onde felizmente me incluo, de uma personalidade e um novo modo ver e entender o mundo.

Foi esta “atitude” que levou Jorge Gil a abrir uma excepção para chamar a atenção para José Afonso, ainda no tempo das baladas de Coimbra, e a “passar” a “Lenda de El-Rei D. Sebastião”, do Quarteto 1111, na altura uma pedrada no charco da música portuguesa.

Foi também essa atitude que levou o “Em Órbita a eleger, num dos seus anos de emissão, “Strangers In The Night”, de Frank Sinatra, um dos temas mais “passados” nesse ano nos vários programas de rádio, como a pior canção do ano, para grande escândalo da maioria e gozo dos autores do programa e dos seus indefectíveis.

Foi, ainda, essa mesma forma de encarar a vida e o mundo que levou o mesmo Jorge Gil a mudar a orientação do programa quando concluiu que as premissas que tinham presidido ao seu conteúdo e orientação musicais iniciais já se não mantinham, dado que a importância sociológica e musical do "rock & roll" como elemento gerador da inovação e da mudança estava claramente a entrar em regime de fade out.

A partir daí “Em Órbita” dedica-se à divulgação e música antiga e barroca, quer enquanto programa de rádio quer como organizador de concertos. Mas o rigor, a inovação, a intransigência e a qualidade das propostas não mudam. É, isso sim, o tipo de música que muda para que a concepção no essencial se mantenha.

Foi mais do que um programa de rádio: foi a descoberta de uma concepção, de uma forma de encarar e tentar viver a vida.

(direitos reservados)

18 comentários:

JC disse...

Oh meu caro Ié-Ié, sinto-me lisonjeado!!! Muito obrigado pela transcrição!
Mais, tb obrigado pela correcção do meu erro em relação à autoria de "Revenge". Fui induzido em erro pelo facto de Jimmy Page ter, de facto, tocado com o grupo, não em "You Really Got Me" (nunca o disse mas conheço a "lenda") mas, isso sim, em "Long Tall Shorty" - guitarra ritmo, por sinal -, o que está absolutamente confirmado e é mencionado no texto do CD da Rhino "You Really Got Me".
Cumprimentos
JC

ié-ié disse...

Vou tirar umas horas para ver se consigo sistematizar as colaborações de Jimmy Page que vão de Michel Polnareff aos Rolling Stones. Não vai ser uma tarefa fácil. São centenas e centenas. Entrevistei-o em 1994 e ele próprio não se lembra de tudo, para não dizer que não se lembra de quase nada. Mas uma coisa já vi, mexendo nalguns papéis. A harmónica de "Revenge" é de Jimmy Page. A co-autoria confirma-se que é de Larry Page.

Obrigado pelo assentimento, JC. É um privilégio meu.

LT

filhote disse...

Algumas notas:

1. Excelente texto, para começar. Apesar dos referidos erros factuais, compreensíveis tal era o manancial de "lendas" que circulavam no mundo do Rock.

2. O meu pai sempre me disse que foi formado pelo "Em Órbita". Ouvia-o religiosamente. Lembra-se ele, não sei se com precisão, que ouviu no programa os Kinks e os Small Faces pela primeira vez.
A minha mãe, como interna do colégio Ramalhão, ouvia o programa às escondidas das freiras. Certas noites, saltava a janela e fugia para ir dançar ao som dos The Saints (futuros Claves).
Parece que a "formatura" dos meus pais foi boa... nota-se na formação deste filhote...

3. "Revenge", antes de ser o indicativo do Em Órbita foi banda sonora do genérico do programa de TV britânico Ready Steady Go! Sabiam?

filhote disse...

Ah, só um comentário lateral... de facto, Portugal nada tem de multirracial... Portugal é dos países mais racistas da Europa! E não venham contestar, sei do que falo!

ié-ié disse...

Tens a certeza? Eu acho que o indicativo do "Ready Steady Go" era o "5-4-3-2-1" do Manfred Mann (que também tem harmónica). Não te equivocaste?

LT

JC disse...

2 comentários 2:
1.De facto, faltam as aspas ao "Portugal multiracial", já que me referia à propaganda do regime de então. De acordo com o facto de Portugal ser dos países mais racistas da Europa.
2. É o 5-4-3-2-1 dos MM.
Abraço
JC

VdeAlmeida disse...

Trata-se realmente de uuma excelente análise. Que subscrevo integralmente.

filhote disse...

Estou com o The Complete Guide to The Kinks Music na mão que cita o "Revenge" como música famosa em Inglaterra por ter sido o 1º genérico do Ready Steady Go!
Agora, se foi genérico durante uma semana ou um mês, já não sei... tenho um Ready Steady Go em VHS (pirata) em que o genérico é o "Wipe Out" dos Surfaris...

filhote disse...

Mas esperem aí!... em 63/64, já existiam discos dos Manfred Mann??? Isso deve ter sido depois...

JC disse...

Confirmo 5-4-3-2-1, que foi gravado a 17 de Dezembro de 1963 nos estúdios da EMI, em Abbey Road (fonte: Manfred Mann at Abbey Road 1963 to 1966 - CD EMI 1997). Agora, quando passou a genérico, não sei, embora a Wikipedia (fui ver) informe que o programa começou a ser emitido em Agosto de 1963 com "Wipe Out" como genérico, mais tarde substituído pelo dito "5-4-3-2-1" e ainda + tarde por "Hubble Bubble" tb dos MM. "Revenge" é que nunca é mencionado.
abraço
JC

NS disse...

Vale o que vale...mas neste site (http://www.offshoreechos.com/offshorethemes/deejays%20T-Z.htm) também aparece a seguinte referência:

TONY WINDSOR (Atlanta / London / 355)
a) REVENGE - The Ray McVay Sound Pye 7N15777 (Feb. 1965), the B side is Raunchy, was this theme used on Radio Atlanta or 355?. A version of a Kinks track, that was used as the theme to TV’s Ready Steady Go.

ié-ié disse...

Já agora, "Raunchy" (Bill Justis) foi a primeira música que George Harrison conseguiu tocar na guitarra, nos Rebels. E foi com ela que convenceu Paul McCartney a entrar nos Beatles, aliás, nos Quarry Men.

O primeiro single dos Manfred Mann, "Why Should We Not/Brother Jack" (POP 1189), data de Julho de 1963.

LT

JC disse...

Edição, meu caro Ié-Ié, já que foi gravado a 23 de Maio. Mas isto é uma "picuínhisse". Parabéns a Harrison, já que "Raunchy" é um dos temas-referência do rock instrumental! Não será o seu caso, mas uma das coisas que me deixa espantado é o relativo desconhecimento do rock instrumental americano (Link Wray, por exemplo) e da surf music, ie Dick Dale (o "Gato Maltês" já lhes dedicou uma série de posts),em Portugal.

ié-ié disse...

Gravado a 23 de Maio (take 6) com a matrix 7XEA 20315 (eheheh - também tenho esse "Manfred Mann at Abbey Road 1963 to 1966 - CD EMI 1997".

Aliás, Manfred Mann (com Paul Jones) é uma das minhas bandas de referência.

Dick Dale? Com certeza, claro! E deixe que lhe diga que O Gato Maltês é um dos meus blogues de cabeceira (e não há muitos!).

LT

filhote disse...

Sou louco (e coleccionador) por todos os discos de Rock instrumental americano! Dick Dale, Chalengers, Surfaris, etc...

Para mim, os melhores são os dois de Johnny and the Hurricanes! O primeiro LP, que inclui "Red River Rock", e o segundo, "Stormsville". Tenho as edições originais americanas da Warwick em estado MINT (belas compras numa feira de discos em Nova York)!

E já ouviram o CD de uma banda incógnita chamada Blue Stingrays? O album chama-se "Surf-N-Burn" e é editado pela Epitone Records (anos 90). Pouca gente sabe quem são eles (eu sei!), e trata-se do melhor disco de Surf instrumental de todos os tempos - sem ponta de exagero. Encomendem na net. Vale mesmo a pena!

JC disse...

Sugiro "The King Of Surf Guitar": The Best Of Dick Dale And The Deltones (Rhino)e "Surfin' Hits"tb da Rhino.

Fantomas disse...

BLUESTINGRAYS, "Monsoon", "Stingray Stomp"...realmente um grande disco.

Unknown disse...

Excelente o texto escrito pelo(a) Ié-Ié. Em 1965 era aluno dos Pupilos do Exército e lembro-me muito ben daquele indicativo do "Em Órbita" e daquela voz inconfundível (só recentemente é que descobri que era a voz do Cândido Mota). Cresci com a música do "Em Órbita" e guardo muitas saudades desse do mesmo, só mais tarde "igualado" pelo "Página Um" do José Manuel Nunes.
Bem hajam.
Victor Jorge