sábado, 9 de fevereiro de 2008

O CANTIGUEIRO


ORFEU - ATEP 6451 - 1972

O Cantigueiro (Samuel) - A Recompensa (Samuel) - Os Castelos Também Se Assaltam (Samuel) - Cantar De Quem Anda Por Lá (Samuel)

Para quem não saiba, ou já o tenha esquecido, convém lembrar que Portugal, antes de Abril, era um país irrespirável: guerra colonial, PIDE, censura, um atraso profundo, um país cinzento.

Só que não era proibido sonhar!

Pode-se considerar, pouco mais que sofrível, a produção de Samuel pós 25 de Abril. Como de alguns outros também. Mas Samuel, e não só, tiveram, no tempo do fascismo, um papel útil e de coragem. Ajudaram-nos a acreditar que algo seria possível, que não eram só ideias cravadas no calendário dos nossos sonhos.

Realizaram recitais de poesia e música um pouco por todo o lado, escreveram livros, artigos de jornal, editaram discos. Foram perseguidos, alguns presos e espancados. Mas fizeram um tempo e ajudaram outros a olhar as realidades circundantes. Que para além do Futebol, das Marchas Populares, do Festival RTP da Canção, havia uma outra realidade, bem diferente e dramática.

Este EP é de 1972 e editado por Arnaldo Trindade & Ca, Lda.

Creio que está por realizar o devido tributo a Arnaldo Trindade, ao papel que ele e a sua editora tiveram na evolução e consolidação da música popular portuguesa, muito concretamente no antes 25 de Abril. Há algumas referências dispersas, principalmente de José Niza, mas nada mais vi.

Em tempos de real risco, Arnaldo Trindade editou Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Fausto e todos os outros, os que não tinham licença de cantigueiro porque não eram os bobos do rei. Basta consultar os catálogos.

A música e a letra, de todas as canções de "O Cantigueiro" são de Samuel, os arranjos de José Calvário, José Niza e do próprio Samuel. Som e estúdios Moreno Pinto e Polysom.

Na contra capa publica-se a letra de “O Cantigueiro” e vale a pena a transcrição, porque aí, muito claramente se dizia que se pode morrer pelos sonhos que sonhamos, que as verdades que se dizem, podem levar o cantigueiro para a prisão.

“Penares de outrora
são feitos versos
sangue das nossas mãos
A noite corre
por todo o corpo
e os amigos são mais que irmãos

Cada janela trás o vento
vento que gela em vão
Mais frio trás
o quadrado negro
das grades da frustração
Morremos pelo sonho que sonhamos

Mau pregador
justo auditório
Pior a pregação
Verdades ditas
fora de tempo
e o pregador vai para a prisão.

Não há fiança
pró cantigueiro
e ele nem dinheiro tem
Se viu demais
que arranque os olhos
e a vida correrá bem

Sonhou curar
a humanidade
dos mil podres que tem
Mas só dum toque
nas negras chagas
morreu de peste também

Se tal soubesse
não cantaria
tudo o que já cantei
Só tem licença
de cantigueiro
quem for o bobo do rei”

Samuel canta bem ou canta mal? A música está bem ou mal construída?

Naquele tempo não eram preocupações de maior, e se bem que ainda não disséssemos que a cantiga é uma arma, estas canções, estes cantigueiros , ajudaram-nos a acreditar que poderiam vir aí dias de esperança e exaltação.

Tal como Sophia escreveria: a madrugada por que se esperava e livres passássemos a habitar a substância do tempo.

Colaboração de Gin-Tonic

4 comentários:

Vítor Soares disse...

Este "ié-ié" está a constituir-se num mural musical de toda uma época. Para memória futura.

filhote disse...

Infelizmente, é tudo verdade o que Hugo Santos escreve sobre o período histórico anterior ao 25 de Abril.

Infelizmente, Portugal ainda é esse país cinzento em que apenas se está autorizado a sonhar.

filhote disse...

E ainda acerca da música de Samuel... felizmente, na Arte os fins nunca justificam os meios... por outras palavras, os sonhos não justificam certos pesadelos...

samuel disse...

Caro IÉ-IÉ

Encontra-se cada disco!...

Caro Filhote

Muito obrigado!!! :)