quarta-feira, 2 de setembro de 2009

GREETINGS FROM HAIGHT-ASHBURY


Por estes dias, em que tanto se falou dos 40 anos de Woodstock, é bom lembrar que o “Movimento Hippie” já tinha tido o seu auge uns anos antes um pouco por todos os Estados Unidos, com particular incidência na Califórnia, e sobretudo em San Francisco. E aqui a maior concentração verificou-se no bairro de Haight-Ashbury, pretexto para a minha missiva de hoje.

As razões para a escolha desse lugar terão sido várias: um relativo afastamento do centro; uma zona bem fornecida de grandes “espaços verdes”, alguns deles com belíssimas vistas sobre a cidade; um lugar com “charme”, com bonitas casas de madeira de estilo vitoriano e já com algum peso na vida cultural da cidade; muito alojamento disponível e rendas baratas, já que a notícia da construção de uma auto-estrada nas proximidades tinha feito fugir muita gente…; finalmente, é bom recordar que muitos membros da chamada “beat generation”, percursora do movimento, já vivia em San Francisco, na região de North Beach. Mas essa zona era mais cara e o alojamento mais escasso, pelo que uma expansão para uma zona que não ficava assim tão longe seria uma solução natural.

Foi no Golden Gate Park, numa das extremidades deste bairro, que cerca de 30 mil hippies se juntaram no dia 6 de Outubro de 1966, num primeiro “love in” que seria o prenúncio dos futuros festivais que, como Woodstock, iriam celebrar o Amor, a Paz e a Música. E poucos meses depois, a 14 de Janeiro de 1967, no mesmo local, com a presença de Allen Ginsberg, Timothy Leary e de mais perto de 50 mil participantes com guizos na mão e flores no cabelo, teria lugar o grande “human be in”, espécie de “Congresso” que esteve na origem do “flower power”. A acompanhá-los esteve a música gratuita das mais célebres bandas locais, que davam pelo nome de Jefferson Airplane, Grateful Dead e Quicksilver Messenger Service.

Algumas das experiências mais interessantes de organização comunitária do “Movimento” tiveram lugar neste bairro: um organismo de apoio como os “Diggers”, fundado por Emmet Grogan, distribuía, numa primeira fase, pratos quentes, levando, mais tarde, esse regime de gratuitidade a algum comércio (mercearias, roupas, etc); a “Haight Ashbury Legal Organisation” assegurava apoio jurídico a quem se visse metido em alhadas; a “Hip Job Cooop” prestava serviços de part-time; a “Huckleberry’s Organisation” dava apoio nas dormidas”; e o Dr. David Smith, seguindo o lema de que a saúde é um direito e não um privilégio, abriu aí, em Junho de 1967, a primeira clínica gratuita dos EUA, que durou até aos dias de hoje.

Foi este o lugar central do célebre “Summer of Love” de 1967. E foi daqui que o “Acid Rock” e, em geral, a música dita “psicadélica” partiram à conquista do Mundo. Com grupos tais como os atrás referidos, mas também com Janis Joplin e os Big Brother and the Holding Company e tantos outros que o empresário Bill Graham se esforçava por trazer ao seu Fillmore Auditorium, como The Who ou Jimi Hendrix. E parece que até por lá tocaram, em conjunto, Miles Davis e os Grateful Dead…

A maior parte desses espectáculos era gratuita e grupos tais como os Dead e os Quicksilver recusariam ainda durante muito tempo a assinatura de contratos com as grandes editoras, para não perderem a sua liberdade, não se associarem ao “sistema” e manterem a pureza do movimento. É por isso que, para muito boa gente que atravessou esses tempos, Jerry Garcia ainda é, hoje, considerado uma espécie de Deus….

Mas o que de bom a música trouxe, a música o levou. E o culpado foi um senhor de quem, aliás, gosto muito: Scott McKenzie, que vendeu a alma ao Diabo (leia-se John Phillips…) e levou o resto da vida a lamentar-se… San Francisco e Haight-Ashbury viram-se invadidas por mais uns larguíssimos milhares de jovens “with flowers in their hair” e, como quase sempre sucede neste tipo de fenómenos sociais, a coisa abandalhou-se. Quem chegava vinha para a Festa de Sex, Drugs and Rock’ n’ Roll e estava-se nas tintas para a Filosofia e para as Utopias do Movimento. E se em Woodstock, dois anos depois, já se sente o seu declínio, bastaram mais alguns meses para que, em 6 de Dezembro 1969, em Altamont, os Hell’s Angels se encarregassem de lhe dar a estocada final, nas costas de uns quantos desgraçados… “The dream is over”, gritaria John Lennon pouco tempo depois…

Quando se passeia, hoje, por Haight-Ashbury sente-se um ambiente diferente de todo o resto da cidade, como se o testemunho da boémia e da irreverência desses tempos tivessem passado de geração para geração. O colorido das casas e das lojas lembra-nos bem a importância que a cor e a pintura sempre tiveram para o Movimento Hippie. Mas também o aspecto dos cafés, das livrarias, das lojas de roupa e, em geral, das pessoas com quem nos cruzamos na rua nos fazem perceber que continuamos, tantas décadas depois, num meio nada convencional. E até o antigo Jeffrey-Haight Hotel (hoje “Red Victorian”, como podem ver na fotografia), esse equivalente local ao Chelsea Hotel de New York, está pintadinho de fresco e mantém, como não poderia deixar de ser, o seu Peace Café…

E se o título desta “crónica” vos fez pensar que vos iria falar do primeiro disco de Bruce Springsteen, desculpem a brincadeira… O Asbury Park do “Boss” tem um h a menos e fica na outra costa, em New Jersey…!

Colaboração de Luís Mira

PS: Eu já vos referi, por diversas vezes, que não sou “investigador” e que todo o conhecimento que tenho é em segunda mão. E se não o sou na Música e no Cinema, muito menos o serei em relação à história do “Movimento Hippie”. Por isso, e para melhor precisão das datas e factos que aqui vos relatei, foi consultado o livro “Pop Music – Rock”, de Philippe Daufouy e Jean-Pierre Sarton, editado em Portugal pela “Regra do Jogo.

8 comentários:

JC disse...

Por lá passei nos idos de 90, caro Luís Mira. Mas, já que falas de Ginsberg, uma das minhas fotos de estimação é tirada à porta da City Lights. Espero nenhum rato f.... da p... se lembre de a roer!
Abraço

Luis Mira disse...

Um rato a roer a foto do "Gato Maltês"...? Já vi isso nos desenhos animados...

Eu nunca fui muito à bola com os poetas da "beat generation", talvez por nunca os ter lido no original, mas sempre em versões traduzidas. Na primeira vez que fui a SF, nos longínquos anos 80, um amigo meu companheiro de viagem levou-me a essa livraria, onde comprei um livro sobre a história da "Warner Brothers". E tenho-a filmada em .... Super 8!
Um abraço

filhote disse...

Bela crónica, Luís Mira. Instigante, como sempre.

Quanto ao referido 6 de Dezembro de 1969 - onde certas facadas deixaram uma ferida profunda na "política Flower Power" -, acrescento, para os incautos, que foi a data de um gratuito pseudo-festival Rock intitulado Altamont Festival, em Altamont Speedway.

O festival contou com a presença de várias bandas, como Flying Burrito Brothers e Jefferson Airplane(os Grateful Dead, amedrontados com a atmosfera, recusaram-se a tocar), e culminou, fatidicamente, com o show dos Rolling Stones. Aliás, todo o evento foi organizado e promovido pela entourage dos Stones, então ainda no auge artístico.

Durante a actuação dos Stones, mais precisamente a meio da canção "Under My Thumb", um jovem negro, Meredith Hunter, é apunhalado por um membro dos Hell's Angels. Embora, seja claramente visível nas imagens, que a vítima apontou um revolver na direcção do palco...

Aconselho o visionamento do DVD "Gimme Shelter", filme de David Maysles, Albert Maysles e Charlotte Zwerin (1970). Trata-se, muito provavelmente, do melhor documentário Rock da História do Cinema. Musical e cinematograficamente falando.

O filme inclui performances dos Rolling Stones durante a digressão que os tornou "The Greatest Rock'n'Roll Band In The World" (Madison Square Garden e Altamont), Ike and Tina Turner (MSQ), Flying Burrito (Altamont) e Jefferson Airplane (Altamont). E ainda inclui a lendária sequência de "Wild Horses" nos lendários Muscle Shoals Studios...

filhote disse...

As edições de "Gimme Shelter" disponíveis no mercado:

1. "Gimme Shelter" - The Criterion Collection (2000, USA). Cópia restaurada (imagem e som de ir às lágrimas), incluindo livro de 44 páginas e três canções extra do show dos Stones no Garden ("Little Quennie"; "Carol"; "Prodigal Son").

2. "Gimme Shelter" - Warner Home Video (2009, versão europeia). Acaba de sair. Igual à edição da Criterion - com livro e tudo -, mas acrescentando ainda mais 3 canções dos Stones no Garden!

Se é obrigatório conhecer alguma coisa da obra dos Rolling Stones, este filme é um exemplo.

Luis Mira disse...

Filhote,
Obrigado pelo comentário e pelo rigoroso esclarecimento complementar. Eu não fui tão longe porque o texto já ia longo e maçudo, e parti do princípio de que os meus amigos sabiam do que se tratava...
Um abraço!

(S)LB disse...

Luís Mira e filhote forever!

filhote disse...

Caro (S)LB, não me confundas com o Bento XVII...

Luis Mira disse...

.... e viver sempre também cansa, como diria o Poeta!