David Ferreira, 55 anos, editor de música, é provavelmente o cidadão português que melhor conhece os bastidores do fenómeno Beatles em Portugal.
No inicío da sua carreira, nas famosas lojas Valentim de Carvalho, avaliou a reacção de quem comprava discos dos Beatles, mais tarde, como primeiro responsável da EMI, foi certamente testemunha de episódios vários.
Da sua experiência como lojista, que lembranças guarda do consumo de Beatles? Quem comprava os discos dos Beatles? Havia excitação, sempre que se adivinhava uma novidade? Sentia-se algum enfoque nos Beatles relativamente a outros grupos?
Comecei a trabalhar na Valentim de Carvalho em Março de ‘72, ainda não tinha 18 anos, mas já não havia Beatles. E passei para o balcão seis meses mais tarde, na loja da Avenida de Roma, onde fiquei até Janeiro de ‘78. O início dos anos 70 foi um período em que os quatro Beatles estavam muito activos com edições a solo, quase não passava um mês sem um single ou um álbum de um deles.
Quanto à obra conjunta dos Beatles, lembro-me de dois surtos de interesse: as canções foram recuperadas numa rapsódia para dançar deum grupo francês chamado Café Crème, que teve um enorme êxito; e os singles dos Beatles tiveram a primeira compilação sistemática nos álbuns duplos vermelho e azul, publicados em ’76 (?). O público destes últimos já era transversal, incluindo pessoas que tinham nascido na altura em que os primeiros singles dos Beatles tinham sido editados.
Lembro-me da minha excitação nos anos 60 como consumidor que começou a comprar os EPs dos Beatles (discos de 45 rotações com 4 músicas) por volta dos dez anos. A loja da Valentim de Carvalho no Chiado tinha na cave uma enorme parede só com fotografias e recortes de imprensa dos Beatles compilados por um tipo chamado Vítor Cunha (que trabalhou muitos anos na empresa) e aquilo era quase um templo; decerto não seria só eu a querer saber tudo, era-se dos Beatles como se era do Benfica ou do Sporting, com a diferença que eles traziam uma carga de lá fora e de liberdade que era muito refrescante. De início, era pouca a rádio que tocava Beatles mas rapidamente descobri quem os tocava e sobretudo quem os tocava primeiro antes de os discos serem editados em Portugal, coisa que até ao “Sergeant Peper’s” sucedia com vários meses de atraso.
Já na EMI, como era abordado o assunto Beatles? Havia alguma atenção especial? Numa editora com tantos pergaminhos na música portuguesa (Amália e outros), que espaço havia para os Beatles?
Internacionalmente, a EMI sempre trabalhou os Beatles como a jóia da coroa, recusando a cedência de faixas com um cuidado que a RCA não tinha na gestão do catálogo do Elvis. Todas as reedições e as publicações de inéditos eram precedidas de muita informação que digeríamos nas semanas anteriores a colocar os discos na rua.
A EMI-Valentim de Carvalho era uma editora de música e não apenas de música portuguesa. O mesmo entusiasmo com que defendíamos os artistas portugueses com quem tivemos a sorte de trabalhar era colocado ao serviço do reportório internacional, quer ele fosse ele novo quer se tratasse de reedições. E trabalhar os Beatles foi sempre um prazer!
Como se processava a edição portuguesa dos Beatles?
A EMI tinha uma tradição muito simpática de federação de empresas, estimulando a coexistência de personalidades diferentes e de editoras locais com uma forte individualidade. Basta dizer que o nome de cada empresa reflectia o seu passado ou mesmo um antigo sócio local: em vez de EMI Germany, EMI France, EMI Spain ou EMI Portugal, havia a EMI Electrola, a Pathé Marconi, a EMI Hispavox ou a EMI-Valentim de Carvalho. E a divulgação de instruções e a troca de informação não impediam uma abordagem diferente em cada país, reflectindo não apenas as oportunidades locais mas também o entusiasmo de cada um.
No nosso caso, eu reunia duas características que me ajudavam na edição de discos dos Beatles: conhecia e adorava o material desde os nove ou dez anos e tinha uma noção dinâmica do marketing, para mim não se tratava só de satisfazer as chamadas necessidades do consumidor mas também de as suscitar, não aceitando de forma passiva uma segmentação demasiado rígida do público-alvo. Ora, ainda hoje, o que há de mais extraordinário neste reportório é a sua frescura e novidade, sempre capaz de cativar públicos novos e até inesperados.
Nos anos 80, a casa-mãe tentou editar uma colectânea de raridades, "Sessions", que os Beatles viriam a vetar. Pensa-se que algumas amostras terão chegado a Portugal e que posteriormente terão sido mandadas destruir. Que verdade há neste caso?
Tenho uma ideia muito vaga de ouvir falar nisso. Não sei onde acaba a realidade e começa a lenda!
Como foi a reacção do mercado português à passagem dos discos de vinil para CD em 1987?
Por mais de uma vez, organizámos dias dos Beatles com um grande apoio da Comunicação Social. O maior de todos, se me lembro bem, até foi por volta de ‘80, com a excelente Rádio Comercial do João David Nunes na altura das primeiras prensagens portuguesas dos álbuns.
Outra história: na edição do “1” tive de vencer alguma resistência dentro da própria EMI portuguesa, onde por vezes se começava a sentir o reflexo do excesso de orçamentação e planeamento (um e outro claro que são necessários mas tudo o que é de mais enjoa!). No fim, todos nos envolvemos e ao fim das primeiras semanas tínhamos vendidos mais CDs do que os nossos colegas espanhóis que tinham um mercado quase cinco vezes maior!
Que atitudes tinha a EMI britânica perante a sua filial portuguesa no que respeita a Beatles? Como era fiscalizado em Portugal o cumprimento das regras radicais e absolutas respeitantes à defesa da obra dos Beatles. Há algum episódio curioso? Houve algum contratempo?
Como disse, tínhamos uma boa liberdade de movimentos na divulgação que fazíamos e éramos considerados como fornecedores de bons exemplos que os outros poderiam copiar. Já na parte do relatoriamento de royalties e de aplicação de procedimentos havia regras muito rígidas: que remédio, tínhamos de a aplicar e não me lembro de alguma dor de cabeça maior por causa disso.
Presumo que no âmbito das suas funções tenha lidado de perto com a entourage editorial dos Beatles, tanto na EMI como na Apple. Que recordações? Que episódios?
Tive o prazer de conhecer, logo em ‘78, um grande especialista chamado Mike Heatley. Trabalhámos juntos no lançamento em Portugal de artistas novos como a Kate Bush e aproveitávamos as paragens para falar dos gostos de cada um, acabando os Beatles por ser tema obrigatório. O Mike ainda hoje é uma autoridade e não espanta que continue envolvido na preparação de cada novo lançamento.
Presumo igualmente que Paul McCartney tenha sido o beatle que melhor tivesse conhecido. Muito trabalho?
Só conheci o Paul e, curiosamente, apesar de nos termos cruzado um par de vezes, só falei com ele quando actuou no Rock In Rio. E, continuando a considerá-lo um músico extraordinário, não gostei do contacto, confesso. Talvez porque não gosto do Rock In Rio com as suas manifestações dignas da imprensa cor-de-rosa e o seu humanitarismo de trazer por casa. Talvez porque na altura eu estivesse muito mais perto do Lennon...! É que também isto é fascinante na obra dos Beatles: o contraste não apenas de personalidades mas também de músicas, capaz de nos levar a valorizar alternadamente sobretudo este ou aquele disco, um ou outro aspecto, o John ou o Paul... ou o George que os meus filhos estão agora a descobrir!
No inicío da sua carreira, nas famosas lojas Valentim de Carvalho, avaliou a reacção de quem comprava discos dos Beatles, mais tarde, como primeiro responsável da EMI, foi certamente testemunha de episódios vários.
Da sua experiência como lojista, que lembranças guarda do consumo de Beatles? Quem comprava os discos dos Beatles? Havia excitação, sempre que se adivinhava uma novidade? Sentia-se algum enfoque nos Beatles relativamente a outros grupos?
Comecei a trabalhar na Valentim de Carvalho em Março de ‘72, ainda não tinha 18 anos, mas já não havia Beatles. E passei para o balcão seis meses mais tarde, na loja da Avenida de Roma, onde fiquei até Janeiro de ‘78. O início dos anos 70 foi um período em que os quatro Beatles estavam muito activos com edições a solo, quase não passava um mês sem um single ou um álbum de um deles.
Quanto à obra conjunta dos Beatles, lembro-me de dois surtos de interesse: as canções foram recuperadas numa rapsódia para dançar deum grupo francês chamado Café Crème, que teve um enorme êxito; e os singles dos Beatles tiveram a primeira compilação sistemática nos álbuns duplos vermelho e azul, publicados em ’76 (?). O público destes últimos já era transversal, incluindo pessoas que tinham nascido na altura em que os primeiros singles dos Beatles tinham sido editados.
Lembro-me da minha excitação nos anos 60 como consumidor que começou a comprar os EPs dos Beatles (discos de 45 rotações com 4 músicas) por volta dos dez anos. A loja da Valentim de Carvalho no Chiado tinha na cave uma enorme parede só com fotografias e recortes de imprensa dos Beatles compilados por um tipo chamado Vítor Cunha (que trabalhou muitos anos na empresa) e aquilo era quase um templo; decerto não seria só eu a querer saber tudo, era-se dos Beatles como se era do Benfica ou do Sporting, com a diferença que eles traziam uma carga de lá fora e de liberdade que era muito refrescante. De início, era pouca a rádio que tocava Beatles mas rapidamente descobri quem os tocava e sobretudo quem os tocava primeiro antes de os discos serem editados em Portugal, coisa que até ao “Sergeant Peper’s” sucedia com vários meses de atraso.
Já na EMI, como era abordado o assunto Beatles? Havia alguma atenção especial? Numa editora com tantos pergaminhos na música portuguesa (Amália e outros), que espaço havia para os Beatles?
Internacionalmente, a EMI sempre trabalhou os Beatles como a jóia da coroa, recusando a cedência de faixas com um cuidado que a RCA não tinha na gestão do catálogo do Elvis. Todas as reedições e as publicações de inéditos eram precedidas de muita informação que digeríamos nas semanas anteriores a colocar os discos na rua.
A EMI-Valentim de Carvalho era uma editora de música e não apenas de música portuguesa. O mesmo entusiasmo com que defendíamos os artistas portugueses com quem tivemos a sorte de trabalhar era colocado ao serviço do reportório internacional, quer ele fosse ele novo quer se tratasse de reedições. E trabalhar os Beatles foi sempre um prazer!
Como se processava a edição portuguesa dos Beatles?
A EMI tinha uma tradição muito simpática de federação de empresas, estimulando a coexistência de personalidades diferentes e de editoras locais com uma forte individualidade. Basta dizer que o nome de cada empresa reflectia o seu passado ou mesmo um antigo sócio local: em vez de EMI Germany, EMI France, EMI Spain ou EMI Portugal, havia a EMI Electrola, a Pathé Marconi, a EMI Hispavox ou a EMI-Valentim de Carvalho. E a divulgação de instruções e a troca de informação não impediam uma abordagem diferente em cada país, reflectindo não apenas as oportunidades locais mas também o entusiasmo de cada um.
No nosso caso, eu reunia duas características que me ajudavam na edição de discos dos Beatles: conhecia e adorava o material desde os nove ou dez anos e tinha uma noção dinâmica do marketing, para mim não se tratava só de satisfazer as chamadas necessidades do consumidor mas também de as suscitar, não aceitando de forma passiva uma segmentação demasiado rígida do público-alvo. Ora, ainda hoje, o que há de mais extraordinário neste reportório é a sua frescura e novidade, sempre capaz de cativar públicos novos e até inesperados.
Nos anos 80, a casa-mãe tentou editar uma colectânea de raridades, "Sessions", que os Beatles viriam a vetar. Pensa-se que algumas amostras terão chegado a Portugal e que posteriormente terão sido mandadas destruir. Que verdade há neste caso?
Tenho uma ideia muito vaga de ouvir falar nisso. Não sei onde acaba a realidade e começa a lenda!
Como foi a reacção do mercado português à passagem dos discos de vinil para CD em 1987?
Por mais de uma vez, organizámos dias dos Beatles com um grande apoio da Comunicação Social. O maior de todos, se me lembro bem, até foi por volta de ‘80, com a excelente Rádio Comercial do João David Nunes na altura das primeiras prensagens portuguesas dos álbuns.
Outra história: na edição do “1” tive de vencer alguma resistência dentro da própria EMI portuguesa, onde por vezes se começava a sentir o reflexo do excesso de orçamentação e planeamento (um e outro claro que são necessários mas tudo o que é de mais enjoa!). No fim, todos nos envolvemos e ao fim das primeiras semanas tínhamos vendidos mais CDs do que os nossos colegas espanhóis que tinham um mercado quase cinco vezes maior!
Que atitudes tinha a EMI britânica perante a sua filial portuguesa no que respeita a Beatles? Como era fiscalizado em Portugal o cumprimento das regras radicais e absolutas respeitantes à defesa da obra dos Beatles. Há algum episódio curioso? Houve algum contratempo?
Como disse, tínhamos uma boa liberdade de movimentos na divulgação que fazíamos e éramos considerados como fornecedores de bons exemplos que os outros poderiam copiar. Já na parte do relatoriamento de royalties e de aplicação de procedimentos havia regras muito rígidas: que remédio, tínhamos de a aplicar e não me lembro de alguma dor de cabeça maior por causa disso.
Presumo que no âmbito das suas funções tenha lidado de perto com a entourage editorial dos Beatles, tanto na EMI como na Apple. Que recordações? Que episódios?
Tive o prazer de conhecer, logo em ‘78, um grande especialista chamado Mike Heatley. Trabalhámos juntos no lançamento em Portugal de artistas novos como a Kate Bush e aproveitávamos as paragens para falar dos gostos de cada um, acabando os Beatles por ser tema obrigatório. O Mike ainda hoje é uma autoridade e não espanta que continue envolvido na preparação de cada novo lançamento.
Presumo igualmente que Paul McCartney tenha sido o beatle que melhor tivesse conhecido. Muito trabalho?
Só conheci o Paul e, curiosamente, apesar de nos termos cruzado um par de vezes, só falei com ele quando actuou no Rock In Rio. E, continuando a considerá-lo um músico extraordinário, não gostei do contacto, confesso. Talvez porque não gosto do Rock In Rio com as suas manifestações dignas da imprensa cor-de-rosa e o seu humanitarismo de trazer por casa. Talvez porque na altura eu estivesse muito mais perto do Lennon...! É que também isto é fascinante na obra dos Beatles: o contraste não apenas de personalidades mas também de músicas, capaz de nos levar a valorizar alternadamente sobretudo este ou aquele disco, um ou outro aspecto, o John ou o Paul... ou o George que os meus filhos estão agora a descobrir!
2 comentários:
É sempre bom falar com alguém que percebe de "investidas editoriais".
"Beatles em Portugal" :)
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