Nestes dias quentes de Verão, nada melhor do que falar-vos de “Death Valley”…
Atravessar “Death Valley” (fronteira da Califórnia com o Nevada) às 3 da tarde, com temperaturas exteriores a rondar os 50º, não é uma aventura tão complicada como à primeira vista se poderá pensar. O ar condicionado do carro e garrafas de água fresquinha na geleira põem-nos a coberto de qualquer percalço, já que de cada vez que saímos para fazer uma fotografia ou dar dois ou três passos a pé a, sensação é a de que saltamos para dentro de uma panela de pressão…
“Death Valley” é considerada a zona mais quente e mais seca de todos os EUA. É uma paisagem espantosa, que contem um pouco de tudo: dunas que nos fazem lembrar o deserto africano; lagos de sal; zonas de paisagem lunar, com rochas de todas as formas e cores; largas extensões planas de areia onde não se vislumbra rigorosamente nada… Mas talvez a maior beleza resida na forma como o movimento do sol vai alterando a paleta das cores daquela paisagem. Infelizmente, as fotografias que vos deixo são incapazes de captar tamanha beleza..
“Death Valley” é terra de Cinema e de cinéfilos. Tudo terá começado ainda no tempo do cinema mudo, quando Erich Von Stroheim utilizou o lugar para uma das mais célebres cenas do “Greed” (1925). Continuou com diversos “Westerns” do período clássico (o mais célebre deles todos talvez tenha sido “Yellow Sky”/”A Cidade Abandonada”, que William Welman realizou em 1948) e foi até aos anos 70, quando Antonioni aí filmou as famosas cenas do “bacanal” de “Zabriskie Point”.
E foi precisamente a “Zabriskie Point”, um dos lugares deste grande deserto, que eu me dirigi.
Mesmo o mais incondicional dos admiradores de mestre de Ferrara, como eu quase que o sou, tem alguma dificuldade em defender “Zabriskie Point”, que anda muito perto de ser o seu pior filme.
A história é conhecida: após o sucesso de “Blow-Up” o produtor Carlo Ponti propôs a Antonioni filmar no Japão. Ele disse que sim mas, no caminho, andou a viajar pelos Estados Unidos e, tal como eu, perdeu-se de amores pelos desertos do Arizona e do Nevada. Disse que era ali mesmo que queria realizar o seu próximo filme e, na altura, um desejo de Antonioni era uma ordem para Carlo Ponti. O filme do Japão ficou à espera…
O pretexto para o arranque de “Zabriskie Point” é o activismo político daqueles anos, ligado aos movimentos estudantis e à luta pelos Direitos Civis dos Negros, mas o filme descamba para uma alegoria não se sabe bem a quê. A explosão da magnífica casa da montanha, ao estilo de Frank Lloyd Wright, simboliza o “inevitável” estoiro do próprio “Sistema”? A cena do “love-in” multiplicado por cem nas rochas de “Zabriskie Point” o contraponto de “humanidade” que falta ao mesmo “Sistema”? Não acredito. Demasiado pobre e demasiado óbvio para Antonioni…
Salvam-se a banda sonora (Pink Floyd, Greatful Dead, Patty Page, Roscoe Holncomb, John Faye, Rolling Stones, The Youngbloods…), as brincadeiras com o “pink airplane” (por vezes até parece uma homenagem a “North by Northwest”…) e algumas fotografias da paisagem americana, urbana e rural, porque Antonioni, tal como Wim Wenders, é um excelente fotógrafo. Mas a cena de que mais gosto é muito simples: um velhote sentado num balcão de um bar a levar uma cerveja à boca. Quase que apostaria que a ideia foi de Sam Shepard, co-argumentista do filme, naquela que julgo ser uma das suas primeiras incursões no Cinema.
O filme começou a levar porrada nos Estados Unidos ainda antes da estreia. Criticavam-lhe a extravagância orçamental e uma visão deturpada do que era a realidade americana. Depois da estreia, saltaram-lhe em cima ainda com mais força, chamando “delírios” às cenas a que atrás fiz referência.
Antonioni defendeu-se como pôde. Acusou os sindicatos pelas imposições que lhe fizeram. E os produtores pelas absurdas decisões que tomavam (contou que um dia pediu um figurante e lhe levaram trinta. Quando perguntou, espantado, o que era aquilo, responderam-lhe apenas: “Just in case”…!). E defendeu veemente a independência da sua visão de autor:
É verdade que, visto desse velho ângulo crítico, o filme, em especial o seu fim, pode até ser delirante. Pois bem, como autor reclamo o direito de delirar, quanto mais não seja porque os delírios de hoje poderão vir a ser as verdades de amanhã.
Eu não sei quais é que são as “Verdades” de hoje, mas duvido que tenham alguma coisa a ver com os “delírios” do Antonioni…
Mas sei que há sempre um pouco de “Verdade” num bonito pôr-do-sol, e por isso aqui vos deixo com dois de “Death Valley”, de um lugar que se chama “Dante’s View”. Um pouco à maneira do “Slides”:
- Sunset
- Another sunset. I know it looks undistinguishable from the last, but I remember the difference…
Luís Mira
Atravessar “Death Valley” (fronteira da Califórnia com o Nevada) às 3 da tarde, com temperaturas exteriores a rondar os 50º, não é uma aventura tão complicada como à primeira vista se poderá pensar. O ar condicionado do carro e garrafas de água fresquinha na geleira põem-nos a coberto de qualquer percalço, já que de cada vez que saímos para fazer uma fotografia ou dar dois ou três passos a pé a, sensação é a de que saltamos para dentro de uma panela de pressão…
“Death Valley” é considerada a zona mais quente e mais seca de todos os EUA. É uma paisagem espantosa, que contem um pouco de tudo: dunas que nos fazem lembrar o deserto africano; lagos de sal; zonas de paisagem lunar, com rochas de todas as formas e cores; largas extensões planas de areia onde não se vislumbra rigorosamente nada… Mas talvez a maior beleza resida na forma como o movimento do sol vai alterando a paleta das cores daquela paisagem. Infelizmente, as fotografias que vos deixo são incapazes de captar tamanha beleza..
“Death Valley” é terra de Cinema e de cinéfilos. Tudo terá começado ainda no tempo do cinema mudo, quando Erich Von Stroheim utilizou o lugar para uma das mais célebres cenas do “Greed” (1925). Continuou com diversos “Westerns” do período clássico (o mais célebre deles todos talvez tenha sido “Yellow Sky”/”A Cidade Abandonada”, que William Welman realizou em 1948) e foi até aos anos 70, quando Antonioni aí filmou as famosas cenas do “bacanal” de “Zabriskie Point”.
E foi precisamente a “Zabriskie Point”, um dos lugares deste grande deserto, que eu me dirigi.
Mesmo o mais incondicional dos admiradores de mestre de Ferrara, como eu quase que o sou, tem alguma dificuldade em defender “Zabriskie Point”, que anda muito perto de ser o seu pior filme.
A história é conhecida: após o sucesso de “Blow-Up” o produtor Carlo Ponti propôs a Antonioni filmar no Japão. Ele disse que sim mas, no caminho, andou a viajar pelos Estados Unidos e, tal como eu, perdeu-se de amores pelos desertos do Arizona e do Nevada. Disse que era ali mesmo que queria realizar o seu próximo filme e, na altura, um desejo de Antonioni era uma ordem para Carlo Ponti. O filme do Japão ficou à espera…
O pretexto para o arranque de “Zabriskie Point” é o activismo político daqueles anos, ligado aos movimentos estudantis e à luta pelos Direitos Civis dos Negros, mas o filme descamba para uma alegoria não se sabe bem a quê. A explosão da magnífica casa da montanha, ao estilo de Frank Lloyd Wright, simboliza o “inevitável” estoiro do próprio “Sistema”? A cena do “love-in” multiplicado por cem nas rochas de “Zabriskie Point” o contraponto de “humanidade” que falta ao mesmo “Sistema”? Não acredito. Demasiado pobre e demasiado óbvio para Antonioni…
Salvam-se a banda sonora (Pink Floyd, Greatful Dead, Patty Page, Roscoe Holncomb, John Faye, Rolling Stones, The Youngbloods…), as brincadeiras com o “pink airplane” (por vezes até parece uma homenagem a “North by Northwest”…) e algumas fotografias da paisagem americana, urbana e rural, porque Antonioni, tal como Wim Wenders, é um excelente fotógrafo. Mas a cena de que mais gosto é muito simples: um velhote sentado num balcão de um bar a levar uma cerveja à boca. Quase que apostaria que a ideia foi de Sam Shepard, co-argumentista do filme, naquela que julgo ser uma das suas primeiras incursões no Cinema.
O filme começou a levar porrada nos Estados Unidos ainda antes da estreia. Criticavam-lhe a extravagância orçamental e uma visão deturpada do que era a realidade americana. Depois da estreia, saltaram-lhe em cima ainda com mais força, chamando “delírios” às cenas a que atrás fiz referência.
Antonioni defendeu-se como pôde. Acusou os sindicatos pelas imposições que lhe fizeram. E os produtores pelas absurdas decisões que tomavam (contou que um dia pediu um figurante e lhe levaram trinta. Quando perguntou, espantado, o que era aquilo, responderam-lhe apenas: “Just in case”…!). E defendeu veemente a independência da sua visão de autor:
É verdade que, visto desse velho ângulo crítico, o filme, em especial o seu fim, pode até ser delirante. Pois bem, como autor reclamo o direito de delirar, quanto mais não seja porque os delírios de hoje poderão vir a ser as verdades de amanhã.
Eu não sei quais é que são as “Verdades” de hoje, mas duvido que tenham alguma coisa a ver com os “delírios” do Antonioni…
Mas sei que há sempre um pouco de “Verdade” num bonito pôr-do-sol, e por isso aqui vos deixo com dois de “Death Valley”, de um lugar que se chama “Dante’s View”. Um pouco à maneira do “Slides”:
- Sunset
- Another sunset. I know it looks undistinguishable from the last, but I remember the difference…
Luís Mira
12 comentários:
Adoro aprender! Sabia lá eu que "Zabriskie Point" era um pedaço do Vale Morto.
E estava em Londres quando o filme foi estreado!!!
Para mim, "Zabriskie" era o filme de Antonioni e a banda sonora de Pink Floyd (e outros...) e ponto final!
Logo que puder vou rever o filme, com outros olhos!
Obrigado, LM, devo-te uma!
LT
Também preciso de rever esse filme...
Belo texto, Luís Mira.
Bem...
Também não sou dono de verdades. Mas custa-me pensar que há alguém que defende que “Zabriskie Point” "anda muito perto de ser o pior filme" de Antonioni.
Enfim. Sou novo e talvez bastante ingénuo para pensar isso, mas para mim, se é que isso conta para alguma coisa, o "Zabriskie Point" é o filme da minha vida.
Já o vi umas dez vezes e acho que na sua simplicidade (sim, se calhar Antonioni só queria mostrar o evidente. Para quê pensar em procurar algo menos óbvio e que talvez não sequer exista?) é um filme grandioso, bem sintetizador de um tempo e de uma concepção do mundo que hoje não parece ter muitas vias de se expressar.
Sim, há dias (é que nem por acaso comprei-o há menos de duas semanas. Tanto quanto sei, do DVD há edição francesa - que é a que consegui-, italiana, russa, penso que alemã. Além da inglesa, óbvio...) estive a revê-lo e só então me lembrei que a cena da avioneta deve ser um decalcamento consciente e uma alusão / homenagem ao "North by Northwest e a Hitchcock. E isso faz algum mal?
Musicalmente, parece-me que todas os trechos foram escolhidos a dedo. Pelo significado e pela leitura que acrescentam às imagens.
Gosto da liberdade da guitarra eléctrica de Jerry Garcia, porque está bem acima (e acredito que para isso foi ali posta) das limitações que o homem construiu e que, com maior ou menor ordem, são personificadas pelas cidades.
Gosto da guitarra triste de John Fahey, que completa um ciclo e dá sentido à narrativa.
Não sei dar-lhe um significado especial (e talvez por isso me fascine) à cena em que o miúdo vai tocando nas cordas de um piano estragado.
Da parte mais carismática do filme (vejam quantos vídeos existem dela no YouTube...) direi apenas que é das cenas mais inesquecíveis que poderemos ver num filme. Mas tal, é importante referi-lo, tem um significado que só pode ser apreendido e só vai sendo construído se atribuirmos emotividade a todas as cenas que a precedem.
É como dizer-se que o ganho está na viagem e não propriamente no destino.
Não faz mal estar sozinho ou pertencer aos defensores do filme.
Como em todo o contacto com uma obra artística, o que importa é o prazer que dela conseguirmos extrair.
:)
Declaração de interesses: não sou um cinéfilo militante (I wish!) e, como tal, não considero o ZP uma obra-prima, mas um bom filme!
Uma excelente banda sonora (Declaração de interesses: sou fã de Pink Floyd e Rolling Stones)!
Assim, junto-me aos defensores do filme e partilho a opinião do último comentário, a Arte (seja ela qual fôr) cumpre a sua função se, de alguma maneira nos tocar ao coração e, pelo menos, a qualquer um dos nossos 5 sentidos, proporcionando prazer.
Após esta visão hedonística, lanço o repto a Luís Mira: estas crónicas (e respectivas fotos) para o prelo, já!
Conhecendo Luis Mira como conheço, ele não deixaria de entrar pelos comentários feitos em redor da sua crónica..Acima de tudo porque não gosta de perder uma troca de impressões como esta. Renovo o aviso: o Luis Mira está de férias e só voltará no dia 15 de Agosto.
Ok, fica o aviso dado.
Não nos abstenhamos, nessa espera, de ir enriquecendo a discussão, com as nossas opiniões e interpretações do filme.
Porque também quero conhecer outros pontos de vista que me ajudem a ver melhor.
:)
Para começar, acho o "Zabriskie Point" um filme lindo, plasticamente falando...
Plasticamente?
Sim, caro Eduardo F, "plasticamente".
Enfim, trata-se de um termo muito utilizado no meio teatral e cinematográfico, que se refere, essencialmente, à estética da obra em causa. No caso de um filme, quando falamos de concepção plástica, pensamos em cores, fotografia, figurinos, cenário, etc...
"Plasticamente", criando uma ligação com outras artes plásticas, como é óbvio. "Plasticamente", de plasticidade de um objecto contemplado.
Ah, então direi que as imagens em câmara lenta após a explosão são do mais plástico que já vi...
Faz sentido.
:)
Caro Eduardo F.;
Só agora tive oportunidade de ler os seus comentários. O Gin-Tonic prometeu-lhe uma resposta minha para mais tarde e não quero deixar de cumprir a sua promessa, embora tenha sérias dúvidas de que ainda vá a tempo...
O que faz a riqueza do cinema de Antonioni não é um conjunto de imagens plasticamente belas, desconexas entre si, mas a sua coerência interna, o significado profundo que poderemos retirar de cada uma delas e da sua articulação. Todos os temas que nos habituámos a associar ao universo de Antonioni (o desespero, a solidão, a incomunicabilidade, o desejo de fuga, a progressiva perda do "Eu" nesses tempos modernos...)nunca nos são evocados por grandes discursos, mas por imagens. Na verdade, Antonioni é tudo menos um cineasta da palavra. É por isso que, muitas vezes, um simples fotograma pode resumir quase todo um filme, como no célebre enquadramento da Monica Viti e do Alain Delon separados por uma coluna...
O que eu digo em relação ao ZP é que ele me parece oco, vazio, gratuito, para não dizer até oportunista face aos tempos que corriam... E se me fala no "prazer das viagens", para mim muito longe de "O Grito", "A Aventura", "Profissão Reporter" ou "Identificação de uma Mulher"...
Mas vocé também não me diz grande coisa acerca dos motivos porque gosta e eu bem sei que essas sensações são, por vezes, difíceis de verbalizar...
Fala-me da boa escolha das músicas e, no meu texto, eu já dizia que era uma das boas coisas que o filme tem... Pergunta-me que mal tem a (eventual...) alusão ao filme do Hitchcock e eu, no meu texto, tinha dito, precisamente, que essas brincadeiras eram uma das coisas engraçadas que o filme tem... Fala-me o Filhote na beleza plástica de algumas imagens e eu, no meu texto, tinha dito precisamente o mesmo...
Mas desculpar-me-ão... Tudo isso não é suficiente para fazer um grande filme. Se estivéssemos a falar de algumas das "esperanças" que por essa altura nasciam no cinema americano (Monte Hellman, Richar Sarafian, Bob Rafaelson...) ainda lhe poderiamos dar algum benefício da dúvida. Agora de Antonioni, para mim um dos maiores de sempre, não...
Dito isto, caro Eduardo, se ZP é "o filme da sua vida", ame-o eternamente e borrife-se nos comentários de tipos como eu (que não estou nada sózinho nessa avaliação do filme, mas longe de mim esgrimir com armas alheias...). Garanto-lhe eu, com grande conhecimento de causa: nada melhor que ficarmos sózinhos a amar um filme (já agora um livro, uma música...) no meio do deserto...
Muito bem respondido.
:)
Claro, a minha cultura cinéfila não é grande. Pois confesso que mais de 90% dos nomes que o amigo referiu não me dizem nada (porque nunca os vi..., não porque não tenha sensibilidade de apreciar até as cenas e diálogos mais indiferentes... quando nos toca, toca e pronto!, tal como diz uma certa Teresa de um filme que fez muito sucesso na televisão portuguesa: "Quando se gosta, gosta-se e pronto!").
Mas a falar é que a gente se desentende.
Muito obrigado pela resposta.
Só não vai a tempo quem / para quem já morreu. :)
Abraço amigo.
:)
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