segunda-feira, 3 de novembro de 2014

REGRESSO AO LOCAL DO CRIME 20


Os malefícios do tabaco. Não o mérito ou desmérito da peça de Tchecov, mas os do cigarro concreto que toda a gente fuma. O meu interlocutor era um técnico de saúde. E pôs-me diante dos olhos as estatísticas, por mim, de resto, conhecidas. Simplesmente, eu navegava noutras águas. Nas da angústia humana que, desde os primórdios – na china, na Índia, no Egipto, na América e na Oceania -, se socorreu dos tóxicos que a acalmassem, pacificassem, fosse qual fosse o preço. Viver é que custa. Morrer não dói tanto. Ninguém hesita em tomar um comprimido se um dente o aflige. E há dores mais profundas e pertinazes do que essas que se aliviam com aspirina. Dores que necessitam de um lenitivo singular, que nos saiba bem enquanto actua e seja um companheiro solícito, um confidente discreto, um amigo fiel em todas as horas e circunstâncias. Um amigo que, mesmo quando acaba por nos tiranizar e perder, nos liberta ainda de nós próprios nas asas da obsessão.

Miguel Torga em Diário Vol. XIII, Publicações Dom Quixote, Novembro de 1999.

Colaboração de Gin-Tonic

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