quinta-feira, 6 de novembro de 2014

REGRESSO AO LOCAL DO CRIME 23


«Eu sei que «fumar mata», que «bloqueia as artérias e provoca ataques cardíacos e enfartes», que «prejudica o esperma e reduz a fertilidade», não tenho dúvida nenhuma de que «o fumo contém benzeno, nitrosaminas, formaldeído e cianeto de hidrogénio» e que palavras tão ameaçadoras hão-de decerto causar doenças esquisitas e terríveis. 

Perguntar-me-ão então por que fumo. E a única resposta que tenho, não sendo talvez satisfatória para algumas pessoas, é: « porque quero».


Como não pretendo (sou um tipo sociável) matar, bloquear as artérias ou prejudicar o esperma «dos que me rodeiam», evito fumar perto de quem não queira (pois tem todo o direito de não querer) fumar o meu fumo, mesmo respirando eu diariamente o fumo dos seus escapes e o perfume das suas águas-de-colónia (gasto fortunas em anti-histamínicos para tratar alergias apanhadas em elevadores!).


E aceito com toda a condescendência de que sou capaz que me expulsem dos seus, dos não-fumadores, restaurantes e dos seus «locais fechados» (na verdade nem aprecio especialmente «locais fechados», cabeças fechadas incluídas). 


Já me é mais difícil aceitar as suas, e as do director-geral de Saúde, lições de moral, e o seu paternalismo, até porque as artérias e o esperma são (perdoe-se-me o pretensiosismo) meus, e enquanto não entrarem em autogestão sou eu quem os representa. 


É certo que, se o tabaco um dia me causar um AVC ou outro tanglomanglo qualquer, os não-fumadores irão pagar com os seus impostos o meu internamento, mas também eu pagarei com os meus o seu e ninguém me vê a proibi-los de se atafulharem de macburgers e de álcool (no caso do álcool, os meus impostos - eu, que não bebo - andam há anos a pagar, além do internamento, a fisioterapia dos estropiados que diariamente quem bebe, fumador e não-fumador, provoca na estrada).


Vendo bem as coisas, em vez de pôr-me uma estrela amarela ao peito e me encerrar em gafarias com exaustão de fumos, o Estado deveria atribuir-me subsídio de risco e o Dr. Teixeira dos Santos condecorar-me pela minha contribuição para a redução do défice e para a sustentabilidade da Segurança Social. 


De facto, pago mais impostos que os não-fumadores e, além disso, morrerei cedo (e nem sequer de rosas coroado), em vez de me arrastar por aí cheio de saúde até aos 100 anos, a receber pensão.


Reconheço que tusso como Lee Marvin em Cat Ballou, que, se calha ter que subir a pé um lanço de escadas ou correr atrás de um autocarro, chego ao fim com os bofes de fora e o coração aos pinotes, e admito que os meus pulmões, outrora belissimamente cor-de-rosa, se assemelhem hoje a um saco de borras de café, mas ninguém tem nada a ver com o preço que pago para fruir o prazer de um Cohiba ou de um Romeu e Julieta. 


Não tenho a mínima intenção de ser o morto mais saudável do meu cemitério e agora, «when I'm sixty four», aos que lamentam, ó Nise, o meu estado (mesmo assim, podia ser pior...), respondo, como Humphrey Bogart, o óbvio: quanto pior se acorda de manhã melhor se passou a noite.


Manuel António Pina em "Crónica, Saudade da Literatura", Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2013

Colaboração de Gin-Tonic

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