Os bailes da minha adolescência não foram de garagem.
No lado da cidade onde nasci, e vivi, não havia carros, quanto mais garagens. Ou melhor: na rua havia um único carro, o do Sr. Guilherme, mas que utilizava a Garagem Estrela.
Ao longo do passado ano mostrei aqui e aqui e aqui e aqui alguns pedaços do que foram esses bailes da vida. Haveria mais a contar mas seria repetitivo. Também de alguns episódios perdi gestos e falas.
Mas não queria terminar os bailes sem esta capa, este disco largamente tocado por aqueles putos da rua, do bairro.
Tudo girava em redor do Vidrinhos: a casa, o quintal, o gira-discos (um portátil em que a tampa era o alti-falante), a maior parte dos discos, tudo pertencia ao Vidrinhos. Até a bola de catechu era do Vidrinhos.
Um dia, ia a caixa a meio, o pai comprou todos os rebuçados dos cromos da bola. O Dudu, que assistiu à cena, aprestou-se a informar que o rebuçado, com o número da bola, estava no fundo da caixa, entre folhas de papel.
O “mais custoso” era a esperança de um dia termos a bola sem precisar do Vidrinhos.
“Mãe: dois tostões para rebuçados”. Mas acabámos sempre dependentes da bola do Vidrinhos.
Os pais do Vidrinhos não eram ricos mas tinham aquela pequena porção de dinheiro a mais que os outros e que fazia toda a diferença.
No Verão, os bailes eram no quintal do Vidrinhos, onde havia uma densa e bem cheirosa parreira de uva americana. Nos bailes dos finais de Setembro, amiúde caíam alguns bagos que sujavam as blusas de seda barata das miúdas.
Mas o Vidrinhos não tinha frigorifico. As garrafas de vinho branco “Valdor” ou “Camilo Alves” (a cerveja não estava vulgarizada) eram colocadas em grandes alguidares coloridos, oferta do “Omo” ou do “Tide”. Para as pequenas havia gasosa, para misturar, produzida e engarrafada em Pizões de Moura, mesmo gasosa, nada a ver com 7Up e demais javardices que por aí se vendem.
O gelo íamos buscar a uma fábrica que existia ali no Arco do Cego por detrás do Cinema Aviz. Embrulhado em jornais e serapilheira transportávamos um bloco de gelo. Caminhada a pé da Penha de França ao Arco do Cego e volta, uma razoável distância, a íngreme subida da Calçada do Poço dos Mouros, uma magote de gajos a revezarem-se, transportando o gelo para os bailes da vida.
Os comes reduziam-se a umas sandes de pão de forma. O queijo e o fiambre comprava-se no Jaquim da Mercearia, deixava muito a desejar e hoje deixaria os cabelos em pé à rapaziada da ASAE. Mas disso ninguém morreu!
Também bolinhos secos da Fábrica Triunfo de Coimbra, as raparigas a ficarem – delicadeza dos rapazes – com os de chocolate e as bolachas de baunilha. Mas a grande festa era a torta de cenoura que a mãe do Vidrinhos fazia. A D. Lourdes, para as meninas, disponibilizava também uma garrafa de capilé. Acabadas as garrafas de vinho branco – não eram muitas - atacava-se no capilé. Uma casquinha de limão, gelo do alguidar. Não mais os capilés me souberam como os daqueles bailes de Verão.
Diga-se que os bailes eram rigorosamente vigiados da janela da marquise pelo pai do Vidrinhos. Recordo-me que quando se punha o Alberto Cortez a cantar “El Vagabundo”, descia até junto do gira-discos e por uns instantes ficava ali a fumar o seu cigarrinho “20-20-20” – “que importa saber quem sou e de onde venho e para onde vou, tu me desprezas por ser vagabundo”. Alguém teria desprezado o Sr. Mateus, mas não necessariamente por ser vagabundo. Ou será que ele gostaria de ter sido vagabundo?
Este “Dance With Me Nr. 9” com Órgão Hammond de Ray Colkignon é um 10 polegadas, um medley, por acaso gosto mais de pot-pourri, de êxitos do tempo (Philips P 14024 R).
Tom Pilibi, Adónis, La Valse à Mille Temps, Milord, Put Your Head On My Shoulder, Tango para Dos, Mustapha, Oh Carol, Pillow Talk são alguns dos 24 temas aqui tocados. Uma faixa de cada lado, um non-stop que dura mais ou menos 15 minutos. A duração das faixas levava a que, para não haver monopólios, volta e meia, alguém gritava “é o passa-passa” e trocava-se de par.
Comovente aquele lenço vermelho, com bolas brancas, enrolado à cintura. A blusa branca, o olhar disparado sabe-se lá para onde, a matéria indefinível dos sonhos.
Colaboração de Gin-Tonic
No lado da cidade onde nasci, e vivi, não havia carros, quanto mais garagens. Ou melhor: na rua havia um único carro, o do Sr. Guilherme, mas que utilizava a Garagem Estrela.
Ao longo do passado ano mostrei aqui e aqui e aqui e aqui alguns pedaços do que foram esses bailes da vida. Haveria mais a contar mas seria repetitivo. Também de alguns episódios perdi gestos e falas.
Mas não queria terminar os bailes sem esta capa, este disco largamente tocado por aqueles putos da rua, do bairro.
Tudo girava em redor do Vidrinhos: a casa, o quintal, o gira-discos (um portátil em que a tampa era o alti-falante), a maior parte dos discos, tudo pertencia ao Vidrinhos. Até a bola de catechu era do Vidrinhos.
Um dia, ia a caixa a meio, o pai comprou todos os rebuçados dos cromos da bola. O Dudu, que assistiu à cena, aprestou-se a informar que o rebuçado, com o número da bola, estava no fundo da caixa, entre folhas de papel.
O “mais custoso” era a esperança de um dia termos a bola sem precisar do Vidrinhos.
“Mãe: dois tostões para rebuçados”. Mas acabámos sempre dependentes da bola do Vidrinhos.
Os pais do Vidrinhos não eram ricos mas tinham aquela pequena porção de dinheiro a mais que os outros e que fazia toda a diferença.
No Verão, os bailes eram no quintal do Vidrinhos, onde havia uma densa e bem cheirosa parreira de uva americana. Nos bailes dos finais de Setembro, amiúde caíam alguns bagos que sujavam as blusas de seda barata das miúdas.
Mas o Vidrinhos não tinha frigorifico. As garrafas de vinho branco “Valdor” ou “Camilo Alves” (a cerveja não estava vulgarizada) eram colocadas em grandes alguidares coloridos, oferta do “Omo” ou do “Tide”. Para as pequenas havia gasosa, para misturar, produzida e engarrafada em Pizões de Moura, mesmo gasosa, nada a ver com 7Up e demais javardices que por aí se vendem.
O gelo íamos buscar a uma fábrica que existia ali no Arco do Cego por detrás do Cinema Aviz. Embrulhado em jornais e serapilheira transportávamos um bloco de gelo. Caminhada a pé da Penha de França ao Arco do Cego e volta, uma razoável distância, a íngreme subida da Calçada do Poço dos Mouros, uma magote de gajos a revezarem-se, transportando o gelo para os bailes da vida.
Os comes reduziam-se a umas sandes de pão de forma. O queijo e o fiambre comprava-se no Jaquim da Mercearia, deixava muito a desejar e hoje deixaria os cabelos em pé à rapaziada da ASAE. Mas disso ninguém morreu!
Também bolinhos secos da Fábrica Triunfo de Coimbra, as raparigas a ficarem – delicadeza dos rapazes – com os de chocolate e as bolachas de baunilha. Mas a grande festa era a torta de cenoura que a mãe do Vidrinhos fazia. A D. Lourdes, para as meninas, disponibilizava também uma garrafa de capilé. Acabadas as garrafas de vinho branco – não eram muitas - atacava-se no capilé. Uma casquinha de limão, gelo do alguidar. Não mais os capilés me souberam como os daqueles bailes de Verão.
Diga-se que os bailes eram rigorosamente vigiados da janela da marquise pelo pai do Vidrinhos. Recordo-me que quando se punha o Alberto Cortez a cantar “El Vagabundo”, descia até junto do gira-discos e por uns instantes ficava ali a fumar o seu cigarrinho “20-20-20” – “que importa saber quem sou e de onde venho e para onde vou, tu me desprezas por ser vagabundo”. Alguém teria desprezado o Sr. Mateus, mas não necessariamente por ser vagabundo. Ou será que ele gostaria de ter sido vagabundo?
Este “Dance With Me Nr. 9” com Órgão Hammond de Ray Colkignon é um 10 polegadas, um medley, por acaso gosto mais de pot-pourri, de êxitos do tempo (Philips P 14024 R).
Tom Pilibi, Adónis, La Valse à Mille Temps, Milord, Put Your Head On My Shoulder, Tango para Dos, Mustapha, Oh Carol, Pillow Talk são alguns dos 24 temas aqui tocados. Uma faixa de cada lado, um non-stop que dura mais ou menos 15 minutos. A duração das faixas levava a que, para não haver monopólios, volta e meia, alguém gritava “é o passa-passa” e trocava-se de par.
Comovente aquele lenço vermelho, com bolas brancas, enrolado à cintura. A blusa branca, o olhar disparado sabe-se lá para onde, a matéria indefinível dos sonhos.
Colaboração de Gin-Tonic
4 comentários:
Gostei mtº do texto, Gin-Tonic. Uma Lisboa que já não existe, mtº à Zambujal. Penso que essa fábrica de gelo tb fabricava gelados, em algum período da sua vida, pois tenho uma mtº vaga ideia de lá ter ido uma vez. Ou estarei enganado?
Duas notas: a 1ª, e única, bebedeira que apanhei na vida, teria para aí uns 16 anos, foi com CUP, numa dessas festas de garagem; com a minha mania dos vinhos, uma pergunta: pq e ao que se chama videira americana?
Abraço
Obrigado pelas palavras, JC.
Sim, uma Lisboa que já não existe. A cidade que trsnsporto é a Lisboa dos livros do José Rodrigues Miguies, do José Gomes Ferreira, as aguarelas de Bernardo Marques, os desenhos de Carlos Botelho. Uma Lisboa de que tenho tantas saudades. Sim, eu sei que por aqueles tempos Lisboa era uma cidade calada, amordaçada, sitiada, vigiada mas o que eu dava - se alguma coisa tivesse para dar - para voltar àqueles bailes de Verão, os meus 15/16 anos.
A fábrica de gelo também vendia gelados e nós apenas os olhávamos. Os tostões estavam rigorosamente contados para o gelo. A entrada era por aquela rua que agora não lembro o nome e que vai dar à Estefânia.
O "cup" também faz parte das memórias mas isso já são anos um pouco mais à frente, as guerras que tive com os amigos para que não pusessem banana no cup...
O Sr. Mateus era minhoto e eu deveria ter escrito que a parreira do quintal do Vidrinhos era de uva morangueira tal como no Minho é conhecida. Mas também se chama uva americana por, ouvi dizer, algum emigrante ter trazido da América um pé daquela vinha. Cresce com facilidade, não precisa de grandes cuidados, dá ums uvas perfumadissimas de que se obtém o vinho morangueiro, ou americano, de baixo teor alcoólico, quase um refresco ,com venda proibida e houve tempos em que não era permitido plantar esta vinha, não sei se ainda o é.
Bom, mas isto já é ensinar o padre nosso ao vigário.
Um abraço
Pois então a minha memória s/ os gelados está correcta. Ainda bem, sinto-me rejuvenescido. A minha ida lá para comer gelados, numa noite de Verão e de calor, com pais e restantes "crescidos" (tios ou amigos dos pais, isso já não me lembro) é das minhas 1ªas memórias, teria não mais (acho) de 5 ou 6 anos. Como devem calcular, deve ter sido uma festa: noite, gelados e acompanhar os "crescidos"!!!
Quanto à videira. Bom, veio de facto da América, mas a história é bem mais complicada. Tentemos...
Nos finais do séc. XIX os vinhedos europeus foram destruídos pela filoxera, uma praga originada por um insecto trazido da América que devastava as raízes das videiras. Escaparam muito poucas vinhas. Em Portugal, que me lembre, para além de 1 hectare ali e um ou dois acolá, apenas as vinhas de Colares por estarem impantadas em areia e as raízes chegarem a ter de "escavar" 10 metros para se implantarem em chão rijo. Parece que, por isso, o "bicharoco" não conseguia lá chegar. Milhares de pessoas caíram assim na miséria e os n/ amigos escoceses aproveitaram para introduzir em força o whisky na Europa continental, pois s/ vinhas não há uvas, sem estas não há vinho e s/ vinho (ou bagaço) não há aguardente, como é óbvio.
Ao fim de alguns anos alguém esperto finalmente descobriu que as videiras americanas eram resistentes á filoxera (pois se o animal tinha vindo de lá...) e que a solução seria mandá-las vir de além-atlântico e enxertá-las na variedade europeia ("vitis vinifera"). Assunto resolvido: hoje em dia, 99% (ou mais) dos vinhedos europeus são constituídos por videiras americanas (os chamados "porta enxertos") enxertadas na tal "vitis vinifera" europeia. As poucas que não são americanas, pré-filoxéricas, dizem-se de "pé-franco".
E que tem isto a ver com o vinho americano? Muito simples: o chamado vinho americano, ou morangueiro, é o produzido por videiras americanas não enxertadas na variedade europeia. E é a isso que o n/ amigo Gin-Tonic se refere. Acho que apresenta alguma toxicidade e, fundamentalmente, não presta. Mas atenção, nos USA produz-se do melhor vinho do mundo. ...Com videiras enxertadas em "vitis vinifera", pois claro.
Gin-Tonic, com tanta polémica a fervilhar por aqui, só agora li o teu texto. Pelo menos, com a devida atenção.
A tua escrita, sim, é "matéria indefinível dos sonhos" - apesar da capa do disco ser instigante.
O teu olho pelo detalhe transforma as memórias em coisas palpáveis. Quero dizer: nunca conheci nem nunca irei conhecer o Vidrinhos, mas agora sei exactamente como ele era!!!
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