José Almada em concerto, num local escolhido e ideal para um recital ao vivo, de canções antigas, vindas do início dos anos 70.
José Almada, quando gravou o seu primeiro disco em LP, em 1970, depois de um EP inicial, não tinha ainda 20 anos, pois nasceu em 1951.
As canções desse primeiro LP são nada menos do que admiráveis, na sua singeleza e composição de letra e música, de qualidade e gosto indiscutíveis.
Os poemas, da autoria de José Gomes Ferreira, da sua lavra ou de um autor seu familiar, Fausto José, e que escreveu o primeiro tema do disco, "Homenagem", são alusivos a temas telúricos, campestres ou a um mundo próprio, de referências únicas na música portuguesa.
Tome-se aquela "Homenagem", cantada a abrir o disco. “Rufaram os tambores, canhões graves troaram e pálidos senhores em volta desfilaram. Houve exéquias reais, com elogios fúnebres nas catedrais, houve círios enormes nos tocheiros, fulgindo como sóis prisioneiros. Coroas sumptuosas, orquídias glicínias e de rosas e negros panos de veludo. E tudo e tudo e mais tudo...”
Ouvir esta letra, acompanhada da voz de José Almada, no arranjo musical de Pedro Osório, que associou no fim da canção os sons lúgubres de um sino fúnebre, no disco "Homenagem", é uma experiência musical, comparável com a audição, ao tempo, aos primeiros acordes de "Mother", de John Lennon.
O clima musical do disco, nesse tema e noutros, cria um ambiente particularíssimo, em que as imagens das letras, associadas aos sons, assentam numa tonalidade lírica de pendor melancólico, com paralelo nos blues rurais da América, embora numa terra como a nossa, com uma riqueza evocatória, muitas vezes superior.
No campo vasto do panorama musical, popular, lembro-me imediatamente, de um cantor , com o mesmo tom, nos seus discos iniciais: Jackson Browne, o californiano da onda do country rock que é autor de alguns dos temas mais notáveis desse género musical.
"Doctor my eyes", Colours of the sun, fountain of sorrow , sing my song to me ou for a dancer, são temas que equivalem, na paisagem Americana, o intimismo do imaginário genuinamente português, de José Almada.
O paralelo, encontro-o, na melancolia da linguagem e da sonoridade em tom triste que sempre me seduziu e que encontra no som rachado do sino de "Mother", a sua expressão sonora mais típica. Essa tonalidade de uns blues, com maior profundidade que a cor do som mais escuro, torna-se brilhante na sublimação artística de quem a sabe compor em notas musicais.
As canções de José Almada, em "Homenagem", foram arranjadas por Pedro Osório, em modo enriquecedor da sonoridade geral do disco, mas não acrescentam substância essencial às composições.
Preenchem apenas os interstícios do arranjo possível, em instrumentos que complementam a simples viola acústica, de cordas de nylon e a voz do cantor. As teclas, secção rítmica e acrescentos diversos de sopro, não substituem ou suplantam a estrutura básica das composições, como por vezes acontece em produções musicais.
A voz de José Almada, no disco, é um encontro com a dicção esquecida do Baixo-Douro, próximo da Beira-Alta, num timbre único.
O concerto de Ovar, no teatro da associação Contacto, mais de 30 anos depois deste som, dificilmente poderia reproduzir, do mesmo modo, o efeito encantatório, mágico, desse disco. Mas recupera a essência do mesmo, pela voz do cantor original e a reminiscência das intenções musicadas.
Ainda assim, ver e ouvir José Almada, ao vivo, acompanhado de uma simples viola acústica, aos 56 anos, merecia no mínimo, a curiosidade de se poder escutar uma lenda gravada em disco de referência da música popular portuguesa e poder aceder a uma conversa particular com o autor de tal maravilha.
E foi isso que sucedeu.
O espectáculo com casa cheia para o efeito, de umas boas dezenas de ouvintes atentos, das velhas canções de José Almada, começou com "E a ovelha bale bale".
Numa pose de pé e viola a tiracolo, a introdução, foi uma surpresa, porque a falta de instrumentação suplementar não retirou à canção, o que nela vale de essencial: a letra, a música e a voz.
Segue-se-lhe "Hóspede", imediatamente e sem introdução, devido a um nervoso miudo confessado pelo cantor, mas sem aparência visível da audiência.
E a um "Vento Irado" que chegou a estar proibido pela censura da época, um "Anda Madraço", numa versão superior à do disco: mais solta e luminosa.
A versão de "Homenagem", a pérola musical do disco, sofre com a falta de instrumentos complementares que o disco apresenta na produção de Pedro Osório. Ainda assim, a introdução, na viola acústica, mostra o potencial da canção, como um sucesso que foi e poderia sê-lo ainda hoje, porque a música não perdeu um átomo da qualidade que transporta.
Os" Anjos" cantam, assim como depois "Pedro Louco" e "Casa Abandonada", tiveram dedicatória a pessoas presentes e de família chegada. Perdidamente, é uma canção de amor, recente e dedicada à mulher, também presente.
Em dúzia e meia de canções, José Almada, apresenta o seu repertório dos dois discos passados e numa voz de autenticidade ainda presente na interpretação desses originais, passa à audiência uma experiência revivida no imaginário dessas composições quase adolescentes, numa idade então já madura.
Não é para todos os artistas, apresentar, três décadas depois de compostas, as canções que fizeram esses álbuns memoráveis, apenas com a sua presença de voz e viola acústica. Nesse intervalo do tempo, muitas coisas ocorreram, no meio dessas canções, mas a vida que nelas se respira em paisagens sonoras e a realidade que transpira nos seus versos, continua a ser apresentada de modo original e com a qualidade intrínseca que as enforma.
Se um concerto de José Almada, com acompanhamento musical de Pedro Osório, poderia ser a concretização de um sonho musical inacabado, este concerto a solo, do autor das canções, foi uma experiência de reconhecimento de uma vida que criou as canções que ainda encantam quem as ouve.
Sendo um cantor desconhecido para uma maioria de ouvintes e amadores de boa música portuguesa, só se pode esperar que os que podem mandar, escolham a reedição dos discos de José Almada, como o ponto de partida para uma Homenagem a este grande autor de música popular portuguesa.
Se muitos discos dos chamados baladeiros estão hoje datados, porque perderam o
leit motiv político que os animava, os de José Almada não envelheceram um dia que fosse, nessa voragem do tempo que cilindra a memória.
A razão principal, reside nos poemas de sempre e nas músicas que se ouvem vezes sem conta, o que é normalmente a marca da qualidade que resiste ao tempo.
O concerto do dia 30 de Maio, foi uma ocasião de reviver essa realidade que ainda pode ser revisitada.
Haja quem dê uma oportunidade de as audiências de rádio e de concertos tomarem conhecimento dessas músicas e o resultado de um trabalho do início dos anos setenta, pode muito bem transpor-se para estes primeiro s anos do séc XXI.
Colaboração de José Forte