segunda-feira, 19 de maio de 2008

MOUSTAKI NO PORTO


Que significado poderá ter, ouvir, em 2008, canções com 40 anos, cantadas pelo seu autor original que, entretanto, sofreu o desgaste do tempo, no físico e na voz que deixou gravada para sempre, nos discos que foi publicando e que marcaram a nossa memória?

Tem um significado especial e particular, de homenagem ao mérito e ao génio de nos entregar, de viva voz, as memórias ainda presentes do tempo que ainda é o nosso.

No caso de Georges Moustaki, cantor de Alexandria, fixado em França, com grande catálogo musical, nos anos sessenta, companheiro dos grandes da “chanson française” dessa época que nos legou a música de Brassens, Regianni, Ferré e Ferrat, a expectativa era relativamente condescendente. A condescendência natural, com uma pessoa que conta já 74 anos e perdeu alguma vivacidade no timbre da voz bem marcada.

A expectativa, no concerto do Porto, no passado dia 17, na Casa da Música, prendia-se com a esperança de ouvir por uma última vez, ao vivo, uma das vozes que emprestou ao romantismo da adolescência e até da idade adulta, as canções, as letras e as músicas do amor apaixonado, até ao mais profundo do indizível.

Moustaki, tal como outros magos da música cantada, sabe usar as palavras para mostrar os sentimentos mais profundos do género humano, em condição de dependência amorosa, em tonalidades subtis e transcendentes, por vezes. A voz, a música e as palavras, em Moustaki, assumem frequentemente a natureza perfeita das mais acabadas canções de amor.

Por isso, ouvir Moustaki, na Casa Música, significava tentar roubar ao tempo aquilo que o mesmo já não pode dar: reviver uma felicidade tal como a encontramos um dia.

Rui Veloso, numa das suas melhores canções descreve o drama: “nunca voltes ao lugar onde já foste feliz”. Nas canções, é um pouco o mesmo. Não se revive a intensidade de uma paixão, apenas a ouvir a banda sonora desse estado arrebatado. Nem seria saudável, para o equilíbrio psicológico, reviver com a mesma intensidade, o que desgasta e corrompe a razão, mesmo dando sentido à vida e à existência.

Talvez por isso, a memória, impele-nos a tentar e a pregar uma partida ao tempo. Foi esse o espírito da empreitada, até porque a própria paixão é algo de insuportável em permanência de sentimento. A tranquilidade do que segue, é sempre mais aprazível e calma que a ebulição dos sentimentos em catadupa.

Moustaki, com aparência de um envelhecimento precoce, para os seus 74 anos de idade, movimenta-se no palco com a desenvoltura natural de um artista distinto.

A sala Suggia, da Casa da Música, apresenta-se num ambiente propício a aceitar o que vai no palco, muito bem colocado e, neste caso, emoldurado por um salão quase cheio de cultores dos mesmos sentimentos e gostos musicais.

A introdução, num português aceitável, compreende-se: dois dos músicos, são de ascendência brasileira; a acompanhante feminina nas vozes em contraponto é uma portuguesa de Paris. Moustaki, promete uma viagem no tempo: no passado, presente e futuro.

A apresentação do músico, faz-se pelos quatro músicos que o acompanham. De cinzento, entram na penumbra e pegam nos instrumentos, no tempo de permitirem a entrada de Moustaki, de branco, combinando com os cabelos e barba e arrancando logo uma estrondosa salva de palmas dos que o esperavam assim, tal e qual.

No começo, declara "L´état de bonheur permanent", a cantar e a tocar viola acústica, acompanhado por outra viola acústica, uma secção rítmica de bateria e baixo e ainda um elemento para o acordeão e a melódica, em sopro.

E a música recomeça, com uma imersão no passado longínquo, de "Ma Liberté". A voz é uma surpresa para quem a esperava uma desilusão. O timbre mantém-se com uma diminuição notória na força de impacto que se escuta nos discos, assim como a facilidade de expressão e dicção perfeita que é apanágio das canções de Moustaki.

Em seguida, uma outra que poderia ser "Joseph", introduzida num canto em português do Brasil, na versão de Nara Leão: "Então meu velho José..." e os aplausos rendem-se à beleza da composição clássica do cantor. Que retoma a letra original que muitos conhecem e cantam de cor.
A seguir, embora pudesse ser antes, o êxito de sempre: "Le Métèque". O meteco Moustaki que se designa como vagabundo do mundo e conquista a audiência em pequenas frases introdutórias das canções, conseguindo uma simbiose notável com o público ouvinte, ao ponto de parecer um concerto de intimidade numa sala de estar.

Logo a seguir, um êxito inesperado: "Portugal". Na introdução, Moustaki fala-nos da canção de Chico Buarque e do 25 de Abril, com uma estrofe cantada em português. E prossegue em tom brasileiro, pedindo emprestado a Luíz Gonzaga o sucesso de sempre que é "Asa Branca", aproveitando para apresentar os músicos brasileiros e tecer loas à música do nosso país irmão e mencionar Zélia Gattai que morreu mesmo nesse dia.

Num tom de nostalgia romântica, "Sans la nommer", evoca “la fleur de mai au fruit sauvage”, para terminar na menção equívoca à “revolution permanente”, num romantismo revolucionário inconsequente, mas de efeito seguro na audiência que aplaude vivamente, a memória do tempo passado e das ilusões perdidas.

E encadeia a canção seguinte, num dos seus êxitos mais melódicos: "Gaspard". Incita o público à participação nos "la la la la" e consegue a adesão imediata da boa vontade dos cantores de ocasião, o que vai acontecendo ao longo do espectáculo.

Engata depois em "Le Temps de Vivre" que é outro monumento ao romantismo. Mesmo sem secção de cordas, a voz e a guitarra são suficientes para pronunciar a palavra “mon amour” que derrete a memória do tempo.

E é nesse estado de espírito que entra em "La Solitude", um dos cúmulos da poesia e da música de Moustaki: “pour avoir si souvain dormi, avec ma solitude, je m´en suis fait preque une amie, une douce habitude. Elle ne me quitte pas d´un pas, fidèle comme une ombre, elle me suit ça et lá, aux quatre coins du monde” .

Nesta altura, os presentes, rendiam-se completamente ao cantor, de voz diminuída, de presença frágil, mas de memórias fortes como rochas de mar.

Moustaki, ainda cantou outras e encantou até com duas ou três novas composições, para terminar com a balada de Sacco e Vanzetti, acompanhada pela audiência definitivamente conquistada pelo charme do cantor e pelo profissionalismo do seu espectáculo, com uma grande dose de empatia para com o público presente.

No final, mais um encore: uma canção de Piaf. "Milord". Com aplausos de pé e contentamento geral. Um grande show de um grande cantor da chanson française.

Comme c'était bien, Monsieur Moustaki.

Colaboração de José Forte

2 comentários:

Rato disse...

Confesso que tive um choque quando vi ontem uma entrevista com o Moustaki na televisão. Realmente não parece um homem de 74 anos mas bastante mais idoso. Folgo no entanto saber que isso não foi impeditivo de uma boa prestação em palco.

gin-tonic disse...

Já se sabe que não há uma canção da vida, há muitas canções das muitas vidas em que vamos andando. Se houvesse, "Chanson Pour Elle" de Moustaki seria uma dessas canções - "elle ne fait pas l'amour elle aime, elle ne marche pas, elle danse".
No álbum "Georges Moustaki", onde chanson pou elle" está incluída, Joan Walsh Anglund escreveu: "a bird does not sing because he has an answer
He sings because he has a song"