Insuflar novo oxigénio nos cristalizados módulos - tanto ingleses como americanos - da farsa e do filme musical; compor as duas modalidades com uns intuitos e uns processos de documentário numa resultante possuidora de subtis incidências críticas e de um delicioso tom provocatório: eis o sucineto balançao do trabalho de Richard Lester em "Os Quatro Cabeleiras do Após-Calypso" ("A Hard Day's Night"), película de escasso êxito na sua estreia, posterior e felizmente "recuperada" pelos cine-clubes.
O espectador que se entusiasmou com ela e a considerou, com razão, uma das melhores e mais inovadoras que nos vieram da Grã-Bretanha nos últimos tempos, , sentir-se-á, provavelmente, um pouco desiludido com "Socorro" ("Help!"), a obra de Lester em que o jovem realizador anglo-americano conta, de novo, com a preciosa colaboração dos Beatles.
Isto precisamente porque o aspecto mais aliciante de "Os Quatro Cabeleiras" se encontra, agora, totalmente ausente quando seria de esperar que, dadas as suas potencialidades, Lester o fosse desenvolver: referimo-nos a essa dimensão documentária tão habilmente integrada à farsa e às canções e que tantas curiosas anotações gerava quanto ao "modo de viver" dos Beatles, quanto às suas relações com o público, quanto à "máquina" de organizar divertimentos colectivos e fomentar necessidades nos jovens em que o conjunto gravitava.
A valoração de "Socorro" em função de "Os Quatro Cabeleiras" surge-nos, no entanto, errónea. Podemos - conforme os nossos interesses - lamentar mais ou menos o abandono, por parte de Lester, de algumas das mais fascinantes linhas de força de "Os Quatro cabeleiras". Mas não é lícito exigir ao realizador desenvolvimentos directos daquilo que mais nos interessou na obra que no-lo revelou. Principalmente quando Lester evidencia um afã de experimentalismo que o não pode deixar de levar a trilhar, de filme para filme, os mais diversos e porventura incompatíveis caminhos e que, tal como se tem vindo a concretizar, nos parece nitidamente positivo (estamos pensando também em "The Knack", rodado entre "Os Quatro cabeleiras" e "Socorro" e inédito em Portugal, o qual adaptava a peça de Ann Jellicoe recentemente montada em Lisboa).
"Socorro", ao contrário das anteriores obras de Lester, propõe-se abertamente como uma fantasia em que quaisquer alibis naturalistas, miméticos, foram afastados e que repousa num unverso semelhante ao dos desenhos animados (ao ponto de existirem fidelíssimas transposições de "gags" clássicos do "cartoon" americano). A sua característica essencial será, desde logo, o "non-sense", o "sem-sentido", partido estético recorrente em toda a filmografia de Lester, mas levado agora a consequências tais que domina por completo a estrutura do filme e lhe impõe um particularíssimo tom cujo único paralelo na história da farsa cinematográfica são as obras dos irmãos Marx, porventura os mais dilectos mestres do realizador (isto para não falar dos desenhos animados de um Chuck Jones ou de um Friz Freleng, que são, também, ao fim e ao cabo, farsas).
Assim, "Socorro" desenvolve na realidade pelo menso um dos aspectos menos valorizado entre nós de "Os Quatro Cabeleiras": o do "non-sense". Mas desenvolve-o num grau tal que exclui a possibilidade e o interesse da integração dessas componente documentária que o espectador esperava encontrar (por isso falávamos acima de uma possível incompatibilidade entre os diversos caminhos trilhados por Lester).
Ora, como é sabido, o "non-sense", baseando-se na anulação sistemática da lógica clássica, só se eleve a método artístico cabal quando releva de uma lógica interna que lhe permita restabelecer um nexo coerente com a realidade, quando, por efeito deste, se transforma de jogo gratuito, em geral superficialmente hilariante, em expressão altamente mediatizada dessa realidade. Sendo assim, ele revela-se um factor valiosíssimo de sátira, curiosamente ágil em escapar às mais diversas inquisições.
Em "Socorro", Lester, tal como os irmãos Marx, escolheu mover-se ao nível da farsa satírica. E a grande falha da obra é precisamente a do limitado alcance da sátira que o emprego do "non-sense" veícula. Este mantém-se demasiado frequentemente ao nível do jogo gratuito, não se torna expressão dessa vontade de corrosão e desmantelamento de valores estabelecidos que é signo da grande sátira mas sim de algo como uma série de anedotas de salão, engenhosas e até impertinente, mas, no fundo, quase amáveis, bastante pouco "mal educada" (veja-se, por exemplo, o que resulta da protecção dispensada pela Scotland Yard aos Beatles, com a Guarda da Rainha "comparada" a soldadinhos de chumbo, o "gag" do fusível dos apartamentos reais, a referência ao roubo do comboio-correio: uma série de episódios sem dúvida hilariantes mas a confinar com o lugar-comum).
Significa isto, em última instância, uma tão deplorável como inesperada timidez por parte de Lester, menos impertinente mas quão mais subtilmente cáustico nas suas obras anteriores? "Socorro", pela sua própria conformação - uma anedota arbitrária ligando uma série de "sketches" - não pode possuir, como elas, alvos definidos.
E esta "ausência" de linhas condutoras é bem mais difícil de dominar com êxito - o que pode explicar muitas coisas. Por outro lado, existem em "Socorro" uma quantas sequências particularmente cáusticas e brilhantíssimas que em nada são inferiores ao melhor que Lester já nos foi capaz de dar (recordemos a da cerimónia sacrificial que abre o filme ou a da batalha entre a seita religiosa que persegue os Beatles e o exército de Sua Majestade em missão de os proteger, esta muito próxima de certas passagens de "Duck Soup", dos Marx).
O problema é, de qualquer modo, complexo e haverá que discuti-lo a partir da constatação de certas características restrititas de que se reveste o actual inconformismo britânico, esse "pôr em questão" o "british way of life" por parte de largas camadas da juventude inglesa e dos seus "arautos" aos mais diversos níveis (de Mary Quant aos "Angry young men", se se quiser), dos quais são elementos salientes tanto os Beatles como - por adopção, já que é americano - Lester. O que, obviamente, não cabe no âmbito destas notas.
Limitemo-nos a afirmar que "Socorro" nos parece dever ocupar um lugar cimeiro nonactual panorama do cinema cómico: pela tentativa - oportuna, e por vezes conseguida - de assimilação e desenvolvimento do legado dos tão esquecidos irmãos Marx conjuntamente com a hábil adaptação ao cinema normal de certas soluções narrativas e plásticas do desenho animado.
Apesar do que foi dito. Apesar, também, de um esforço na elaboração dos "gags" que se torna demasiado evidente e lhes diminui o rendimento. Apesar, ainda, de duas ou três canções cuja qualidade é indiscutível mas que estão "a mais e em que o emprego da cor e das desfocagens recorda - pobre Lester! - Claude Lelouch (se bem que "Um Homem e uma Mulher" seja posterior a "Socorro").
Manuel Machado da Luz, in "Seara Nova" nº 1.462, Agosto de 1967
PS - leitura nada fácil, ein?
O espectador que se entusiasmou com ela e a considerou, com razão, uma das melhores e mais inovadoras que nos vieram da Grã-Bretanha nos últimos tempos, , sentir-se-á, provavelmente, um pouco desiludido com "Socorro" ("Help!"), a obra de Lester em que o jovem realizador anglo-americano conta, de novo, com a preciosa colaboração dos Beatles.
Isto precisamente porque o aspecto mais aliciante de "Os Quatro Cabeleiras" se encontra, agora, totalmente ausente quando seria de esperar que, dadas as suas potencialidades, Lester o fosse desenvolver: referimo-nos a essa dimensão documentária tão habilmente integrada à farsa e às canções e que tantas curiosas anotações gerava quanto ao "modo de viver" dos Beatles, quanto às suas relações com o público, quanto à "máquina" de organizar divertimentos colectivos e fomentar necessidades nos jovens em que o conjunto gravitava.
A valoração de "Socorro" em função de "Os Quatro Cabeleiras" surge-nos, no entanto, errónea. Podemos - conforme os nossos interesses - lamentar mais ou menos o abandono, por parte de Lester, de algumas das mais fascinantes linhas de força de "Os Quatro cabeleiras". Mas não é lícito exigir ao realizador desenvolvimentos directos daquilo que mais nos interessou na obra que no-lo revelou. Principalmente quando Lester evidencia um afã de experimentalismo que o não pode deixar de levar a trilhar, de filme para filme, os mais diversos e porventura incompatíveis caminhos e que, tal como se tem vindo a concretizar, nos parece nitidamente positivo (estamos pensando também em "The Knack", rodado entre "Os Quatro cabeleiras" e "Socorro" e inédito em Portugal, o qual adaptava a peça de Ann Jellicoe recentemente montada em Lisboa).
"Socorro", ao contrário das anteriores obras de Lester, propõe-se abertamente como uma fantasia em que quaisquer alibis naturalistas, miméticos, foram afastados e que repousa num unverso semelhante ao dos desenhos animados (ao ponto de existirem fidelíssimas transposições de "gags" clássicos do "cartoon" americano). A sua característica essencial será, desde logo, o "non-sense", o "sem-sentido", partido estético recorrente em toda a filmografia de Lester, mas levado agora a consequências tais que domina por completo a estrutura do filme e lhe impõe um particularíssimo tom cujo único paralelo na história da farsa cinematográfica são as obras dos irmãos Marx, porventura os mais dilectos mestres do realizador (isto para não falar dos desenhos animados de um Chuck Jones ou de um Friz Freleng, que são, também, ao fim e ao cabo, farsas).
Assim, "Socorro" desenvolve na realidade pelo menso um dos aspectos menos valorizado entre nós de "Os Quatro Cabeleiras": o do "non-sense". Mas desenvolve-o num grau tal que exclui a possibilidade e o interesse da integração dessas componente documentária que o espectador esperava encontrar (por isso falávamos acima de uma possível incompatibilidade entre os diversos caminhos trilhados por Lester).
Ora, como é sabido, o "non-sense", baseando-se na anulação sistemática da lógica clássica, só se eleve a método artístico cabal quando releva de uma lógica interna que lhe permita restabelecer um nexo coerente com a realidade, quando, por efeito deste, se transforma de jogo gratuito, em geral superficialmente hilariante, em expressão altamente mediatizada dessa realidade. Sendo assim, ele revela-se um factor valiosíssimo de sátira, curiosamente ágil em escapar às mais diversas inquisições.
Em "Socorro", Lester, tal como os irmãos Marx, escolheu mover-se ao nível da farsa satírica. E a grande falha da obra é precisamente a do limitado alcance da sátira que o emprego do "non-sense" veícula. Este mantém-se demasiado frequentemente ao nível do jogo gratuito, não se torna expressão dessa vontade de corrosão e desmantelamento de valores estabelecidos que é signo da grande sátira mas sim de algo como uma série de anedotas de salão, engenhosas e até impertinente, mas, no fundo, quase amáveis, bastante pouco "mal educada" (veja-se, por exemplo, o que resulta da protecção dispensada pela Scotland Yard aos Beatles, com a Guarda da Rainha "comparada" a soldadinhos de chumbo, o "gag" do fusível dos apartamentos reais, a referência ao roubo do comboio-correio: uma série de episódios sem dúvida hilariantes mas a confinar com o lugar-comum).
Significa isto, em última instância, uma tão deplorável como inesperada timidez por parte de Lester, menos impertinente mas quão mais subtilmente cáustico nas suas obras anteriores? "Socorro", pela sua própria conformação - uma anedota arbitrária ligando uma série de "sketches" - não pode possuir, como elas, alvos definidos.
E esta "ausência" de linhas condutoras é bem mais difícil de dominar com êxito - o que pode explicar muitas coisas. Por outro lado, existem em "Socorro" uma quantas sequências particularmente cáusticas e brilhantíssimas que em nada são inferiores ao melhor que Lester já nos foi capaz de dar (recordemos a da cerimónia sacrificial que abre o filme ou a da batalha entre a seita religiosa que persegue os Beatles e o exército de Sua Majestade em missão de os proteger, esta muito próxima de certas passagens de "Duck Soup", dos Marx).
O problema é, de qualquer modo, complexo e haverá que discuti-lo a partir da constatação de certas características restrititas de que se reveste o actual inconformismo britânico, esse "pôr em questão" o "british way of life" por parte de largas camadas da juventude inglesa e dos seus "arautos" aos mais diversos níveis (de Mary Quant aos "Angry young men", se se quiser), dos quais são elementos salientes tanto os Beatles como - por adopção, já que é americano - Lester. O que, obviamente, não cabe no âmbito destas notas.
Limitemo-nos a afirmar que "Socorro" nos parece dever ocupar um lugar cimeiro nonactual panorama do cinema cómico: pela tentativa - oportuna, e por vezes conseguida - de assimilação e desenvolvimento do legado dos tão esquecidos irmãos Marx conjuntamente com a hábil adaptação ao cinema normal de certas soluções narrativas e plásticas do desenho animado.
Apesar do que foi dito. Apesar, também, de um esforço na elaboração dos "gags" que se torna demasiado evidente e lhes diminui o rendimento. Apesar, ainda, de duas ou três canções cuja qualidade é indiscutível mas que estão "a mais e em que o emprego da cor e das desfocagens recorda - pobre Lester! - Claude Lelouch (se bem que "Um Homem e uma Mulher" seja posterior a "Socorro").
Manuel Machado da Luz, in "Seara Nova" nº 1.462, Agosto de 1967
PS - leitura nada fácil, ein?
1 comentário:
Não será uma leitura difícil mas torna-se "empastelada" pelo uso de tanta tinta a camuflar duas ou três ideias básicas sobre o filme.
Péssimo jornalismo este.
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