Na minha última "crónica" tinha-vos contado que John Steinbeck se tinha escapado de Salinas para Monterey aos 17 anos. A família possuía uma "cottage" em Pacific Grove e ele para lá foi passar largas temporadas, arranjando trabalho onde este lhe aparecesse. Ganhar "experiência de vida" é muito bonito, como sempre me disse o meu velho Pai...
Depois de uma passagem pela Universidade, Steinbeck regressaria a Salinas aos 24 anos, aí se mantendo, de forma intermitente, nos 4 anos seguintes. Em 1930 casou-se e foi então de novo viver, de forma mais estabilizada, para a tal casa de Pacific Grove. E é, precisamente, nessa década de 30 vivida em Monterey que Steinbeck irá escrever aquela que, em minha opinião, é a parte mais interessante da sua obra, e que culminará, em 1939, com a publicação de "As Vinhas da Ira".
Na altura não era tanto assim mas, hoje, Pacific Grove é uma zona residencial chique de Monterey, com belas mansões antigas e uma vista de mar maravilhosa.
Monterey era, nos tempos de Steinbeck, uma cidade de actividade predominantemente piscatória. Curiosamente e nos tempos mais chegados, os primeiros a exercer essa actividade foram os chineses, que por lá se instalaram durante a segunda metade do séc XIX. Mais tarde haveriam de lá chegar os italianos (da Sicilia, sobretudo), os galegos e até os portugueses, estes muito ligados à pesca da baleia.
Colada a Pacific Grove, naquela que começou por se chamar "Ocean Vue Avenue" e depois se passou a designar por “Cannery Row” , ficava precisamente a zona dos grandes armazéns e fábricas de conservas. Se se lembrarem do filme "Clash by Night", que Fritz Lang realizou em 1952, no qual uma muito jovem Marilyn Monroe trabalhava numa destas fábricas agarrada a uma máquina de cortar sardinhas, ficarão com uma ideia mais exacta do ambiente que por lá se vivia, que o próprio Steinbeck descreveu assim no início do seu livro "Cannery Row"/"Bairro da Lata" (1945):
"Cannery Row, em Monterey, na California, é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, um som, um vício, uma nostalgia, um sonho. Cannery Row é acumulação e desperdício: lata, ferro, ferrugem e gravetos; pavimentos escavados, terrenos de ortigas e amontoados de cordame; fábricas de enlatar sardinha de chapa ondulada, dancings, restaurantes, bordéis e pequenas mercearias atranvacadas; laboratórios e albergues. Os seus habitantes são, como disse o homem certa vez, "pegas, alcoviteiras, batoteiros e filhos da mãe", com o que pretendia dizer "toda a gente". Tivesse o homem espreitado por outra frincha e talvez dissesse: "santos e anjos, mártires e homens bons", e significaria a mesma coisa".
Mas o mar cansou-se de tanta azáfama e a sardinha começou a rarear a partir de inícios dos anos 50, o que levou ao progressivo abandono de toda aquela indústria conserveira.
Hoje, Cannery Row é, juntamente com Fisherman's Warf, que fica lá perto, a zona mais turística de Montery. Os velhos armazéns mantêm a traça e, como é habitual nestas circunstâncias, foram recuperados para lojas, restaurantes e centros comerciais. Num desses grandes armazéns, junto ao mar, encontra-se hoje instalado o Aquário de Monterey, um dos principais dos EUA. E não falta até, como poderão ver, uma estátua de homenagem a Steinbeck, que tanto fez por aquelas terras e aquelas gentes. Mas faltou-me uma coisa a mim: há quase 30 anos atrás, quando lá passei pela primeira vez, havia sobre o mar, num pontão de madeira, um desses carroceis iluminados cuja visão, na noite estrelada e com o mar a bater mesmo ao lado, me deixou maravilhado e não mais me saiu da cabeça. Fui lá agora para o rever e já não o encontrei... “Has been”…!
Quem também não encontrou grandes resquícios do seu passado foi o próprio Steinbeck. Em 1960, ainda antes de ganhar o Prémio Nobel, Steinbeck decidiu fazer, de caravana (a que deu o nome de "Rocinante"...) uma grande viagem pelos Estados Unidos, na companhia do seu cão Charley. Essa viagem haveria de dar origem a um dos seus últimos livros, "Viagens com o Charley", publicado em 1962.
Como não podia deixar de ser, Steinbeck passou por Monterey à procura de alguns dos "homens bons" do seu tempo. Encontrou muito poucos, e o que viu deve ter-lhe sido muito penoso… A um amigo de infância que ainda lhe chamava “Juanito”, como nos velhos tempos, e lhe garantia que nada tinha mudado, Steinbeck respondeu assim:
Põe o pé na rua – estranhos, estrangeiros, milhares deles. Olha para as colinas – parecem pombais. Hoje percorri a pé a Rua Alvarado a todo o comprimento e voltei para trás pela Calle Principal e não vi nada senão estranhos. Esta tarde perdi-me em Peter’s Gate. Fui ao Campo do Amor, ao regressar de Joe Duckworth pelo Campo da Bola. É um terreno para venda de carros usados. Os meus nervos estão desafinados com as luzes do tráfego. Até os polícias são estranhos, estrangeiros. Fui ao Vale Carmel, onde em tempos poderíamos disparar um trinta-trinta em qualquer direcção. Agora não se poderia atirar um berlinde sem atingir um estrangeiro. As pessoas não me fazem diferença, Johnny, tu sabes isso. Mas estas são pessoas ricas. Plantam gerânios em grandes vasos. Há piscinas onde as rãs e os camarões de água doce costumavam estar à nossa espera. Não meu amigo, não seja trouxa…”.
E, mais adiante, num indisfarçável misto de tristeza e raiva, acrescentaria:
“No meu alvoroço de despeito nostálgico, prestei um mau serviço à Península de Monterey. É um belo lugar, limpo, bem dirigido e progressivo. As praias estão limpas, ao passo que em tempo eram infestadas de tripas de peixe e de moscas. As fábricas de conserva, que em tempo espalhavam um fedor doentio, desapareceram, havendo em seu lugar restaurantes, lojas de antiguidades e semelhantes. Agora pescam turistas e não sardinhas, e essa espécie não parece quererem extinguí-la. Carmel, que começou com escritores famintos e pintores indesejáveis, é agora uma comunidade de pessoas abastadas e de aposentados. Se os descobridores de Carmel voltassem, não poderiam dar-se ao luxo de lá viver, mas as coisas não iriam tão longe. Seriam imediatamente detidos como indivíduos suspeitos e deportados para além dos limites da cidade.
O lugar do meu nascimento mudara, e, tendo-me ido embora, não mudara com ele. Mantinha-se na minha memória como fora em tempo, e a sua aparência exterior confundia-me e encolerizava-me.
O que vou dizer deve ser a experiência de muitíssimas pessoas deste país onde tantas vagueiam e regressam. Procurei amigos velhos e provados. Pensei que o cabelo deles recuara um pouco mais do que o meu. As saudações eram entusiásticas. As lembranças jorravam. Velhos crimes e velhos triunfos eram trazidos à luz e limpos de pó. Então, subitamente, a minha atenção vagueava, e, olhando para o meu antigo amigo, via que a dele vagueava também. Era verdade o que dissera a Johnny Garcia – eu era o fantasma. A minha terra crescera e mudara, e os meus amigos com ela. Voltando agora, tão mudado para os meus amigos como a minha terra estava mudada para mim, falseava o seu quadro, desnorteava a sua memória. Quando me fora embora morrera, e ficara portanto fixo e imutável. A minha volta apenas causava confusão e embaraço. Embora não pudessem dizê-lo, os meus amigos queriam que eu partisse, de modo a poder tomar o meu lugar apropriado no padrão da lembrança, e eu queria partir pela mesma razão. Tom Wolfe tinha razão. Não podemos voltar para o lar porque o lar deixou de existir, excepto nas bolas de naftalina da memória.
A minha partida foi uma fuga….”.
Desculpem lá o mau jeito, mas hoje deu-me p’ra isto…
Colaboração de Luís Mira