Este “post” poderia ter um outro título: de como no fim de um cozido à portuguesa saltam discos de Natal em Janeiro e o Ary vem à baila.
Para quem não saiba, os almoços dos guedelhudos parecem uma feliz manhã de Natal da infância.
De repente, qualquer um tem para um outro qualquer uma coisinha: DVDs – “era isto que tu querias, não era?”, CDs – “não mereces, mas toma lá!”, também saem livros, revistas, olhos de vidro, caras de mau, gatos que tocam piano falam francês.
O escriba acabara o cozido à portuguesa, olhava para uma pinguinha no fundo do jarro, para matar depois da bica, e não é que Mr. Ié-Ié lhe invade o espaço com discos de Natal?
“Toma lá e diz obrigado” e ele, obediente, teve que dizer quatro vezes obrigado, porque quatro eram os discos. E cereja no topo do bolo: “tome lá o “Sur La Mer” dos Moody Blues e diga mil vezes obrigado. Quem é amigo… quem é?”.
De tanto “obrigado”, o escriba teve que mandar baixar mais um jarrinho de tintol e partilhou-o com Mr. Ié-Ié. Lamentavelmente os fotógrafos de serviço ao almoço estavam preocupados com as beldades presentes e não registaram estes momentos.
De como daqui se chega a Ary? Não sabe, sabe apenas que se foi há vinte e cinco anos e que faz falta! Tão só!
José Carlos Ary dos Santos. Uma força da natureza que ocupava todo o espaço e o mais que em redor estivesse.
José Carlos Ary dos Santos, um grande poeta da língua portuguesa, que não foi maior porque a determinada altura preferiu oferecer poemas para canções em vez de burilar a sua poesia. Foi uma opção que deu frutos. Hoje muita gente tem um certo gosto musical porque ouviu canções com poemas do Ary. Mas perdeu-se o resto.
Natália Correia tem do Ary a melhor definição: “era um vulcão de afectividade”. Provocador sem limites, satírico, com um humor fulminante e venenoso, José Carlos Ary dos Santos tem na literatura portuguesa um lugar, mas vive o dilema do poeta por um lado, do letrista por outro, mas nos dois com uma qualidade ao alcance de muito poucos.
Numa entrevista, Jorge Palma disse: “Eh pá, eu estava uma vez à tarde, antes do 25 de Abril, no “Vavá” com o Fernando Tordo e disse-lhe que não conseguia escrever uma canção em português, que as palavras não cabiam e que estava tudo mal. Então ele virou-se para mim e perguntou-me porque é que eu não falava com o Ary dos Santos e deu-me o número de telefone dele. Telefonei-lhe às seis da tarde e às nove estava em casa dele a mostrar-lhe as músicas. E ao fim de duas horas, depois de uns gins lá pelo meio, já havia não sei quantas letras. O Ary era um artesão das palavras, aliás, como ele disse em poemas autobiográficos, e foi uma grande escola para mim. Dominava o português de uma maneira tão genuína. E depois houve o convívio todo, íamos para a ribeira às seis da manhã, depois de termos começado com champanhe francês e acabado com Camilo Alves... vinho tinto. Era o que havia... um descalabro”.
Mas decididamente a vida não foi um mar de rosas para Ary: o Partido só muito tarde se desfez (?) da vergonha (?) da sua declarada homossexualidade, os académicos olharam-no sempre de soslaio, o jornalismo cultural tratou-o com desdém, apenas se preocupando com os seus “fait-divers”. A singularidade da sua obra nunca foi sublinhada. De tudo e de todos Ary se riu, gozou, passou à frente: “os cães que ladrem que eu vou passando”.
Numa entrevista a Baptista-Bastos citou Óscar Wilde: “Digo sempre, não o que deveria dizer mas o que na verdade penso".
Em 1969 deu “show” em pleno “Zip-Zip” e o país inteiro ouviu-o dizer claramente, entre muitas outras coisas: “homem que vive só não vive bem”. Em 1972 dizia, às sextas-feiras, poesia na “Tipóia”, uma casa de fados. (assim um pouco como Woody Allen toca clarinete às segundas-feiras num bar de Nova Iorque, por pura diversão): “Ir À “Tipóia” não é apenas um gesto de amizade para com a Adelina Ramos. É também uma atitude de sinceridade para com a poesia. Nunca escrevi para ficar nos livros".
Da “Tipóia” só arredou pé porque a Inspecção dos Espectáculos disse que ele não podia recitar sem fazer um exame de artista de variedades. Claro que o Ary recusou-se a comparecer perante um júri de mediocridades fascistas. “Exame de Artista de Variedades”. Hoje, isto dá para rir, mas… por aqueles tempos a história era outra.
Um dia, “de peito feito à morte”, como escreveu Clara Ferreira Alves no “Expresso", deixou-nos. O José Gomes Ferreira dizia que viver também cansa e o Ary dos Santos, talvez no meio do turbilhão em que vivia, tenha querido voltar atrás, deixar as canções, voltar à poesia, apurá-la.
Dizem que não conseguiu. Afogou-se, então, num mar de “gin” que lhe provocou a morte. Uma morte ligada a uma solidão interior muito grande. Morreu porque não queria estar mais vivo. Como Adriano Correia de Oliveira, o Eduardo Guerra Carneiro e tantos outros.
Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
--- é tão vulgar que nos cansa ---
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
--- a morte é branda e letal ---
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
Para quem não saiba, os almoços dos guedelhudos parecem uma feliz manhã de Natal da infância.
De repente, qualquer um tem para um outro qualquer uma coisinha: DVDs – “era isto que tu querias, não era?”, CDs – “não mereces, mas toma lá!”, também saem livros, revistas, olhos de vidro, caras de mau, gatos que tocam piano falam francês.
O escriba acabara o cozido à portuguesa, olhava para uma pinguinha no fundo do jarro, para matar depois da bica, e não é que Mr. Ié-Ié lhe invade o espaço com discos de Natal?
“Toma lá e diz obrigado” e ele, obediente, teve que dizer quatro vezes obrigado, porque quatro eram os discos. E cereja no topo do bolo: “tome lá o “Sur La Mer” dos Moody Blues e diga mil vezes obrigado. Quem é amigo… quem é?”.
De tanto “obrigado”, o escriba teve que mandar baixar mais um jarrinho de tintol e partilhou-o com Mr. Ié-Ié. Lamentavelmente os fotógrafos de serviço ao almoço estavam preocupados com as beldades presentes e não registaram estes momentos.
De como daqui se chega a Ary? Não sabe, sabe apenas que se foi há vinte e cinco anos e que faz falta! Tão só!
José Carlos Ary dos Santos. Uma força da natureza que ocupava todo o espaço e o mais que em redor estivesse.
José Carlos Ary dos Santos, um grande poeta da língua portuguesa, que não foi maior porque a determinada altura preferiu oferecer poemas para canções em vez de burilar a sua poesia. Foi uma opção que deu frutos. Hoje muita gente tem um certo gosto musical porque ouviu canções com poemas do Ary. Mas perdeu-se o resto.
Natália Correia tem do Ary a melhor definição: “era um vulcão de afectividade”. Provocador sem limites, satírico, com um humor fulminante e venenoso, José Carlos Ary dos Santos tem na literatura portuguesa um lugar, mas vive o dilema do poeta por um lado, do letrista por outro, mas nos dois com uma qualidade ao alcance de muito poucos.
Numa entrevista, Jorge Palma disse: “Eh pá, eu estava uma vez à tarde, antes do 25 de Abril, no “Vavá” com o Fernando Tordo e disse-lhe que não conseguia escrever uma canção em português, que as palavras não cabiam e que estava tudo mal. Então ele virou-se para mim e perguntou-me porque é que eu não falava com o Ary dos Santos e deu-me o número de telefone dele. Telefonei-lhe às seis da tarde e às nove estava em casa dele a mostrar-lhe as músicas. E ao fim de duas horas, depois de uns gins lá pelo meio, já havia não sei quantas letras. O Ary era um artesão das palavras, aliás, como ele disse em poemas autobiográficos, e foi uma grande escola para mim. Dominava o português de uma maneira tão genuína. E depois houve o convívio todo, íamos para a ribeira às seis da manhã, depois de termos começado com champanhe francês e acabado com Camilo Alves... vinho tinto. Era o que havia... um descalabro”.
Mas decididamente a vida não foi um mar de rosas para Ary: o Partido só muito tarde se desfez (?) da vergonha (?) da sua declarada homossexualidade, os académicos olharam-no sempre de soslaio, o jornalismo cultural tratou-o com desdém, apenas se preocupando com os seus “fait-divers”. A singularidade da sua obra nunca foi sublinhada. De tudo e de todos Ary se riu, gozou, passou à frente: “os cães que ladrem que eu vou passando”.
Numa entrevista a Baptista-Bastos citou Óscar Wilde: “Digo sempre, não o que deveria dizer mas o que na verdade penso".
Em 1969 deu “show” em pleno “Zip-Zip” e o país inteiro ouviu-o dizer claramente, entre muitas outras coisas: “homem que vive só não vive bem”. Em 1972 dizia, às sextas-feiras, poesia na “Tipóia”, uma casa de fados. (assim um pouco como Woody Allen toca clarinete às segundas-feiras num bar de Nova Iorque, por pura diversão): “Ir À “Tipóia” não é apenas um gesto de amizade para com a Adelina Ramos. É também uma atitude de sinceridade para com a poesia. Nunca escrevi para ficar nos livros".
Da “Tipóia” só arredou pé porque a Inspecção dos Espectáculos disse que ele não podia recitar sem fazer um exame de artista de variedades. Claro que o Ary recusou-se a comparecer perante um júri de mediocridades fascistas. “Exame de Artista de Variedades”. Hoje, isto dá para rir, mas… por aqueles tempos a história era outra.
Um dia, “de peito feito à morte”, como escreveu Clara Ferreira Alves no “Expresso", deixou-nos. O José Gomes Ferreira dizia que viver também cansa e o Ary dos Santos, talvez no meio do turbilhão em que vivia, tenha querido voltar atrás, deixar as canções, voltar à poesia, apurá-la.
Dizem que não conseguiu. Afogou-se, então, num mar de “gin” que lhe provocou a morte. Uma morte ligada a uma solidão interior muito grande. Morreu porque não queria estar mais vivo. Como Adriano Correia de Oliveira, o Eduardo Guerra Carneiro e tantos outros.
Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
--- é tão vulgar que nos cansa ---
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
--- a morte é branda e letal ---
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Colaboração de Gin-Tonic
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Colaboração de Gin-Tonic