quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DOCE OUTONO


DIAPASÃO - DIAP 16006/R - 1977

Lado 1

Espectáculo – Chula – Doce de Chila – Mais um Filho – Entre a Flor e a Enxada

Lado 2

Rapa, Tira, Deixa e Põe – Parteira a do Mar – Dança do Amargar – Rosie – Gente Assim

Orquestrações de Sérgio Godinho, Fausto, Júlio Pereira

A vida faz-se de saberes, sabores.
O Outono é um tempo de cheiros.

Teremos sempre que ir lá baixo, à infância, se queremos saber o que somos, porque somos, onde o mais importante se passou e sem darmos por isso.

Doces, os maravilhosos doces que a avó fazia, impregnando a casa de um cheiro enternecedor. O cheiro da marmelada acabada de fazer. Tem uma memória povoada de cheiros. As maçãs reineta, verdadeiras maçãs reineta, que a avó guardava numa arca acamadas em palha e folhas de jornal. Maçãs assadas no forno, aquelas maçãs. Ainda hoje, pelo Outono, tenta repetir o encantamento, mas as maçãs não são as mesmas, ele também não.

Numa velha página há muito esquecida do malogrado diário “O Século”, Elaine Sanceau, inglesa por nascimento e portuguesa por paixão, deambulando por Lisboa no amargo Outono de 1944, lamenta a ausência das malgas de marmelada a secar ao sol, em cada janela lisboeta, cobertas de papel vegetal embebido em aguardente, proibidas naquele ano pelo racionamento do açúcar que a Segunda Guerra Mundial transformara em raridade, apenas disponível em casos de excepção. Um capítulo negro da vida longa da humilde marmelada lusitana.

Também já não há malgas de marmelada nos Outonos das nossas cidades. A vida moderna encarrega-se de destruir, no espaço de duas ou três décadas, uma assistência familiar personalizada, assente na figura da “Mãe”, que, entre outras coisas, garantia uma alimentação diferente em cada casa de família.

Os mais velhos recordam, por certo, os comeres da infância. Aqueles dias perfumados de fazer marmelada. A cor, a transparência e o mistério da geleia que os mais pequenos perguntavam intrigados, donde vinha e como era possível.

Mas tudo isto se foi, num ápice, na voragem da industrialização.

E nem por isso somos mais felizes
.

in "À Mesa Com A História", Manuel Guimarães, Colares Editora

Colaboração de Gin-Tonic

9 comentários:

DANIEL BACELAR disse...

Mais um maravilhoso texto do nosso amigo Hugo (Gin-Tonic).
PARABÉNS

filhote disse...

Assino por baixo, Daniel. Texto muito bonito.

Quando ao "Doce de Shila"... trata-se de um LP que me traz doces recordações...

gin-tonic disse...

Caro Daniel,
Caro Filhote,
Obrigado pelas palavras amáveis mas terá que vos dizer que lhe não podem ser dirigidos. Por erro de transmissão, a autoria de parte do texto encontra-se omitida.
A parte final, a mais interessante do "post" é da autoria de Manuel Guimarâes, uma pessoa amável, "um desesperante amante da vida e da arte de gastronomia" (Carlos Consiglieri) e que, infelizmente, já deixou a Terra da Alegria Esse texto é retirado do seu livro "À Mesa Com a História" publicado pela Coilares Editora.
Para que conste:
O texto de Gin-tonic começa em "A vida faz-se de saberes e sabores" e vai até "ele também não.
O texto de Manuel Guimarães começa em "Numa velha página há muito esquecida..." e vai até "E nem por isso somos mais felizes."
Colocados os pontos nos ii, resta pedir desculpas a todos os viajantes do "Ié-Ié", pelo lamentável lapso.

DANIEL BACELAR disse...

Caro Hugo
De qualquer maneira a prosa tinha o teu toque inconfundivel.
Sempre que escreves qualquer coisa,consegues transportar-nos para mundos imaginários,portanto se desta vêz o texto não é todo teu,os parabéns são extensivos para as outras vezes em que não fiz comentários sobre os mesmos.
Diga-se de passagem e para dar um pequeno toque "malandreco" a esta coisa,deve ter sido com essa "conversa" que levaste a Aida ao castigo!!!!
Miuda SORTUDA!!!!!!

Rato disse...

Última hora: será esta especialidade a sobremesa do almoço do próximo sábado.
Sujeito a marcações prévias.

afonmari disse...

Falar de Manuel Guimarães comove-me. Tive o privilégio de trabalhar com ele e ganhei um amigo. Am´vel e bem disposto era aquilo a que se pode chamar um companheirão. Em Benfica há um restaurante - A Travessa" que tem na ementa um prato de bacalhau a que deram o nome de "Bacalhau à Manuel Guimarães.
Foi de sua iniciativa o "Congresso das Sopas" que todos os anos se realiza em Tomar. Um fim de semana em que se podem comer as mais variadas e saborosas sopas.
(Aida)

ié-ié disse...

Fui grande cliente da "Travessa", do meu amigo Vítor. Há anos que já lá não vou - o "Edmundo", do também meu amigo Alfredo, sempre fica mais em conta -, mas prometo regressar em breve para provar esse bacalhau.

LT

Anónimo disse...

Etiquetas

Sérgio Godinho, Doces, Fado :)

Muleta disse...

a Mãe fazia tijelas e tijelas, bem cobertinhas com papel vegetal, a secar, para a marmelada ficar com uma deliciosa carapaça........