segunda-feira, 6 de outubro de 2008

FRANCISCO NAIA E JOSÉ AFONSO


Conheci o Professor José Afonso em Aljustrel. Fui seu aluno no Externato Filipa de Vilhena. Foi o meu professor da disciplina de História. Eu tinha 14 anos e frequentava o 4º. ano do ensino liceal. Ele teria 22 ou 23 anos. Recém-licenciado, convidado a ir leccionar para aquele colégio por um professor, seu amigo e ex-colega, que também lá ensinava: o Dr. Delgado.

O professor José Afonso era muito simpático, muito aéreo e sorridente. Por vezes andava triste e distante, outras vezes cantarolava nas aulas e nos intervalos até cantava e, ainda, por vezes, escrevinhava aquilo que trauteava.

Como deve calcular-se aquilo despertava a nossa curiosidade, nomeadamente a minha, dada a minha educação musical no seio da minha família.

O meu pai era o chefe da estação dos caminhos-de-ferro de Aljustrel e, simultaneamente, maestro. Dava aulas de música, participava em muitas actividades culturais e até tinha uma pequena orquestra formada pelos meus irmãos e outros amigos (a orquestra Tonicher).

Eu gostava de cantar, mas como era o mais novo, não tinha a formação dos meus irmãos, tinha-me escapado àquela disciplina dos concertos.

O professor José Afonso, naturalmente aproximou-se da minha família musical e de um grande poeta aljustrelense, homem de esquerda, o sr. Edmundo Silva – pai do Edmundo Silva, baixista dos Sheiks, que com ele também contactou.

Entretanto, através do Dr. Delgado, que acima citei, soubemos na turma que aquele professor era um dos grandes cantores de fados e baladas de Coimbra. Ficámos banzados de admiração.

Então era cantor aquele professor que nos despertava tanta curiosidade e nos ensinava a ver a História com outros olhos? De facto, falava-nos da Liberdade, da Democracia, da Igualdade e da Fraternidade. Ensinou-nos muito sobre a divisão das classes sociais, do significado da exploração e da opressão.

Também nos falava dos trabalhadores, dos camponeses, dos mineiros, dos sindicatos e do que era reivindicar por uma sociedade mais justa. Falou-nos das prisões e dos prisioneiros, do que era a polícia política e do seu papel em certos países.

A História do manual era uma, mas a verdade histórica era outra. Eu e muitos outros alunos sentimos que algo de diferente se passava à nossa volta, como se nos estivessem a mentir, apesar de sermos putos e de acharmos tudo bem. E às vezes até falávamos disso e íamos tirar dúvidas com o Professor José Afonso.

Chegou por fim o dia de tirarmos nabos da púcara durante uma aula e ele, muito humildemente, confirmou-nos ser verdade aquilo que o Dr. Delgado nos havia dito. E pronto, entrámos no ciclo das canções e dos fados de Coimbra. Algo de maravilhoso!

Eu tinha uma guitarra acústica, velhota, com dois ou três buracos, que eu tapara com fita adesiva e algodão, a imitar o tratamento de ferimentos, mas que tinha um som e uma afinação excelente…

E lá levei a guitarra para o colégio. E ele cantou, libertou-se, sorriu sem parar – cantou e ensinou-nos. Eu aprendi logo fados novos, baladas que ele alguns anos depois gravou em disco.

Aljustrel rejubilava.

O Zeca Afonso, já assim chamado, cantou nas colectividades, em associações em pequenas festas e encontros informais ao ar livre. Eu e alguns amigos lá estávamos sempre a acompanhá-lo e a cantar com ele. Dizia que gostava de me ouvir cantar, mal sabendo que eu e ele, anos depois, nos encontraríamos do mesmo lado da barricada.

(Curiosamente, um dia, num recital em Setúbal chamou-me o “trovão da Planície”)

O tempo correu e como diria o Fernando Namora no seu livro "A Noite e a Madrugada": de trás dos tempos vêm tempos e outros tempos vêm…

O povo de Aljustrel rejubilou!

Muitos dos estudantes desse tempo vieram a seguir após o 25 de Abril rumos no campo da política, como autarcas, deputados, dirigentes partidários, professores etc.

O professor José Afonso, apesar do pouco tempo que lá esteve a dar aulas, ensinou-nos bem a lição da Liberdade e da Justiça Social. E no dia da sua partida, de comboio, esteve uma imensa multidão de estudantes, seus familiares e muitos mineiros.

Houve cantos e choros e muitos lenços a dizer-lhe adeus e chapéus a acenar. Ele nunca se esqueceu deste momento.

Aljustrel ficou-lhe grato!

Orgulho-me muito de tê-lo conhecido e compreendido, de tê-lo cantado na tropa – na guerra em Angola, onde estive como alferes miliciano – e, após o meu regresso da guerra, e ter reingressado na Universidade, com ele convivido durante todos estes anos, desde 68 até ele ter partido.

Estivémos em tudo o que era sítio, apanhámos muitos sustos, mas tivémos e démos muitas alegrias a muita gente oprimida.

Francisco Naia, in "Memória Alentejana", Out. 2007, via Associação José Afonso

5 comentários:

josé disse...

O José Afonso, pôde ser professor, assim como este seu aluno conta: em liberdade de expressão,no tempo do Estado Novo.

Se fosse hoje e falasse nas aulas contra a ministra da Educação, tinha um processo disciplinar e uma expulsão às costas, pelas diligentes responsáveis das DRE deste país.

Um disse...

A má-fé do comentário anterior é arrepiante. Fico-me por aqui.

Jack Kerouac disse...

Normalmente no tempo do Estado Novo, para professores deste género que fossem denunciados,os processos eram sumaríssimos, e cumpridos em Caxias, Peniche, Aljube, Tarrafal ou Angra. Só uma falta de respeito enorme por quem sofreu na pele esses "processos", é que pode permitir uma comparação entre o mal que se faz hoje e o que se praticava nos tempos da "outra senhora". Apesar de esta ministra e este governo andarem realmente por maus caminhos, mas guardem-se as devidas proporções.

Edward Soja disse...

Bem... eu ia a dizer "Que bonito texto..." ...

(engraçado... - ou questão de psicologia que logo os publicitários aproveitarão para usar contra nós? - que não li este texto no blogue da AJA e aqui li-o sem pensar no contrário... deve ser do fundo preto...)

... mas depois li os vossos comentários e foi-se toda a beleza que ele contém e em mim ficou.

Sois uns malandros.
:)

Rato disse...

Ó José, o Zeca Afonso professor no tempo do Estado Novo "em liberdade de expressão"? Essa não!!!
Nos primeiros anos da década de 60, antes de partir para Moçambique, teve sempre o estatuto de provisório na Escola Industrial e Comercial de Faro. Em 1965, no liceu Salazar em Lourenço Marques, dão-lhe a cadeira de Geografia (!) para leccionar. A nível não oficial dá aulas nocturnas de Pedagogia, gratuitamente, no Centro Associativo dos Negros de Moçambique. Devido a isso é transferido compulsivamente para a Beira.
Em 1967 regressa a Portugal, para o liceu de Setúbal. Devido a intimidações constantes das pessoas mais influentes da terra vai parar à Casa de Saúde de Belas, onde, logo na primeira semana, é notificado da sua exoneração do ensino "por conveniência de serviço". Depois de ter alta sobrevive a dar explicações até que o Arnaldo Trindade lhe dá, em boa hora, um contrato de gravação em 1970.
No ano seguinte regressa a Moçambique mas na manhã do dia seguinte à chegada é preso pela PIDE e recambiado de imediato para Lisboa. A razão? "Pelo facto da sua presença resultarem graves inconvenientes de ordem interna ou internacional".
Em Junho de 72 o Ministério do Ultramar faz um despacho a revogar a proibição de entrada nas Províncias Ultramarinas.
E isto só para falar da profissão de professor, que, segundo ele próprio, era o que realmente lhe dava prazer.