quarta-feira, 8 de outubro de 2008

BOM DIA, BREL


Era Outubro e lembra-se de lhe telefonarem a dizer que Jacques Brel morrera.

Ocorreu-lhe dizer que não era bem assim, morrer é apenas deixar de ser visto, ou os mortos somos nós aqui sentados, para lembrar Dinis Machado, que há dias disse que ia ali, mas não demorava, era só um estantinho.

Elio Vitttorini chamou a um livro seu: “Consideram-se Mortos e Morrem”.

Brel foi um deles. Pensou passar os dias a preparar a sua morte e em cada canção fez uma despedida. Não lembra agora quem, mas alguém algures deixou escrito que a pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida. “A morte espera-me nos lilases que o coveiro lançará sobre mim para construir o futuro".

No tal dia por ele considerado, despediu-se dos palcos, disse que não estava para a andar a enganar as pessoas cantando canções de há dez anos e partiu para uma das Ilhas Marquesas no Pacifico. “Todos apanhamos os comboios que podemos”, “partir para onde ninguém parte”.

Devastado por milhões de cigarros, álcool em abundância, uma solidão sem nome, não chegou a fazer 50 anos. Acontece aos homens de extremos ou de excessos, talvez aos marinheiros.

No porto de Amsterdão

há marinheiros que bebem

e que bebem e tornam a beber

e que bebem sempre mais

bebem à saúde das putas de Amsterdão

de Hamburgo e das outras

quer dizer à saúde das damas

que lhe oferecem os seus lindos corpos

que lhe oferecem a sua virtude

em troca de uma moeda de ouro

e quando estão bem bebidos

postam-se com o nariz para o céu

assoam-se nas estrelas

e mijam – por mim choro –
nas mulheres infiéis

no porto de Amsterdão

Chamaram-lhe egoísta, insolente, malandro misógino, machista, imprudente, conflituoso, ordinário, feio, duro, orgulhoso, algo mais, e este algo mais são muitas coisas.

O idiota de um crítico francês chegou a escrever que todos os dias partiam comboios de Paris para Bruxelas. Brel mandou-o bugiar, a outros também, e ficou. E aconteceram as canções maravilhosas que marcam toda a sua vasta obra e nos acompanham pela vida.

Canções como único socorro sabe-se lá de quê, para quê, palavras simples carregadas de dor, que nos dizem que podemos ser velhos sem ser adultos e ele, Brel, a gozar-nos, a dizer que as canções não servem para nada.

oferecer-te-ei

pérolas de chuva

vindas de países

onde nunca chove.

Mas pensa sempre que Brel ainda está entre nós num qualquer bar de Paris ou de Amsterdão a beber umas cervejas, a fumar uma cigarrada.

Na saudade de o recordar. Põe a rodar um disco, mais logo colocará um DVD - Brel a suar abundantemente, gravata às três pancadas, gestos de raiva, palavras de ironia e ternura, também de paixão, sons de piano e acordeon e percebe que quando ele canta

E que todos riam

E que todos dancem

E que todos se divirtam como loucos

No dia em que me meterem na cova.

isso é apenas uma imagem literária, mera literatura para nos enganar, uma vez mais.

Colaboração de Gin-Tonic

5 comentários:

Rato disse...

O meu "encontro" com Brel foi tardio, muito tardio. Corria o ano de 1968 quando fui ver o filme "Les Risques du Métier / Os Ossos do Ofício", de André Cayatte, no qual o protagonista principal - um professor - se via envolvido, salvo erro, num caso qualquer de pedofilia. Nunca mais vi esse filme e como a memória já começa a falhar, não me lembro de muitos mais pormenores. Mas o actor que interpretava o papel do professor chamava-se Brel, Jacques Brel. E só nessa altura soube que o senhor "também" cantava. Depois, claro, foi a descoberta, o deslumbramento, a apropriação total daquela voz, daquelas canções, para o resto dos meus dias.
E, Hugo, é urgente começares a compilar as tuas crónicas neste blog e fazeres umas cópias para os amigos. Acredita que farias muita gente feliz.

josé disse...

Ça va de soi, monsieur Hugo. Très bien aussi.

Sobre Brel: não tenho discos de Brel. Conheço as músicas, algumas belíssimas, engenhosas, sarcásticas, fundamentais até.

No inicio dos setenta, Brel era figura cativa nos programas do rádio. COmo outros francófonos, aliás. Ferré, por exemplo, era muito requisitado.

Em meados dos setenta, o "regresso" de Brel, com um disco novo e de capa muito publicitada, foi alvo de curiosidade.
Até a Música & Som lhe dedicou uma crónica especial.
Mas nessa altura, os anos de ouro já tinham passado.

C´est la valse a mille temps.

O que eu não me tinha dado conta é que o cantor morreu ainda sem fazer 50 anos.

"Comme le temps passe vite, madame!"

Rato disse...

Cela c'est un crime, mon ami José, n'avoir pas un seul disque de Jacques Brel...

Edward Soja disse...

Belíssimo texto.

Para grandes amantes de ainda maiores artistas recomendo, neste caso, esta maravilha: http://rateyourmusic.com/release/comp/jacques_brel/jacques_brel__boite_a_bonbons___16_cd_complete_recordings_/

Abraço.

filhote disse...

Uma vénia deste lado do Atlântico. Ao texto, e sobretudo ao transcendente Brel!