Há músicas que nos trazem o sabor da terra depois da chuva, outras que nos fazem ter vontade de subir àsmais altas montanhas e gritar.
Há as que rasgam estradas à nossa frente e as que suscitam dentro de nós o desejo e a urgência de sulcar os mares infinitamente, até ao fio do horizonte. As que nos despertam a vontade de voar e aquelas que, garanto-vos, nos põem mesmo a bater asas, como o Jack Nicholson no “Easy Rider”…
Há músicas que nos fazem acreditar que não haverá maior prazer no Mundo do que ficar deitado sozinho no sofá na companhia delas, e as que, inversamente, nos levam a sentir que bom mesmo é poder gritá-las em altos berros, na companhia dos nossos Amigos…
Músicas que nos fazem sonhar e partir para longes Terras e outras que nos lançam baldes de água fria à cara, chamando-nos à realidade deste Mundo cruel onde vivemos. Músicas que nos fazem sentir melhores pessoas, e outras que não tanto…
Há músicas que ainda hoje trazem colados à sua pele perfumes de mulher. Músicas que nos fazem sorrir, outras que nos toldam o olhar...
E há as músicas de fim de tarde…
Para mim, as inesquecíveis músicas de fim de tarde eram as que ouvia no “Em Órbita” na adolescência, ou as que ouvia já mais crescidinho quando, jovem Quadro sem grandes responsabilidades profissionais, me podia dar ao luxo de, assim que mudava a hora, pirar-me cedo, muito cedinho, do emprego e ir pela beira-mar a ouvi-las até me fartar. Ou ainda aquelas em cujos braços me vinha anichar em busca de serenidade quando, uns bons anos depois, já saia bem tarde do escritório mergulhado em preocupações, stresses e ansiedades.
Mas as memórias da adolescência serão sempre as mais saborosas…!
Que saudades eu tenho dos bons velhos tempos em que o meu pobre Pai, zeloso pelo sagrado cumprimento dos horários familiares, me gritava lá do fundo do corredor de 15 metros:
“LUÍS MIGUEL!!! ESTAMOS TODOS À TUA ESPERA! SE NÂO TE SENTAS IMEDIATAMENTE À MESA VAIS COMER SOZINHO PARA A COZINHA…!”.
E em que eu lhe respondia da mesma moeda, da outra ponta do corredor:
“JÁ OUVI PAI! DESCULPA LÁ… ESPERA SÓ MAIS UM BOCADINHO PORQUE ESTOU MESMO A ACABAR UMA COISA MUITO URGENTE…”.
Ambos sabíamos que era mentira, mas só eu sabia que a urgência que me retinha era o acabar de ouvir a interminável “Sad Eyed Lady Of The Lowlands”, não na versão de Dylan, mas na da Joan Baez, minha preferida.
E tantas vezes acabei mesmo sozinho à mesa da cozinha…
Mas nem a comida fria (o meu Pai não permitia que fosse aquecida…!) nem a presença pouco inspiradora da Cesália, a nossa querida empregada residente, me impediam de perder o olhar no vazio e continuar a ouvir ao longe a história da Senhora dos olhos tristes:
With your mercury mouth in the missionary times
And your eyes like smoke and your prayers like rhymes
And your silver cross, and your voice like chimes
Oh, who they think could bury you?
Um dos meus discos favoritos de fim de tarde era este que aqui vos deixo, “Slim Slo Slider” (de capa azul, do lado esquerdo da imagem *), que Johnny Rivers gravou em 1970 e que é o disco dele de que mais gosto.
Grandes músicas de grandes compositores, interpretadas por um John “Ramistella” em excelente forma: Van Morrison (“Slim Slo Slider” e “Into The Mystic”), John Fogerty (”Wrote A Song for Everyone”), Tony Joe White (“Rainy Night In Georgia”), Gram Parsons (“Brass Buttons” e “Apple Tree”), um tal de James Hendricks que nada tem a haver com o autor de “Electric Ladyland” e que assina duas músicas, uma delas a fabulosa “Muddy River”, e até Scott McKenzie, o “tontinho de San Francisco”, com uma música retirada do seu segundo LP, “Stained Glass Reflection”, a que já aqui vos diz referência a long, long time ago.
A banda de apoio é excelente, embora, para o meu gosto pessoal, haja aqui e além um excesso de sax, que julgo fruto da perniciosa influência das grandes bandas da época, tipo Chicago e Blood, Sweat & Tears.
É claro que as minhas músicas de fim de tarde se deixavam ouvir o ano inteiro, mas a minha memória selectiva prefere associá-las àqueles dias cada vez mais longos que se seguiam à mudança da hora, quando a luz do Sol começava a escorregar mais lentamente pelas fachadas dos prédios em frente, na Avª da República.
Não é de estranhar, por isso, que assim que começo a sentir no ar um cheirinho à chegada da Primavera e à mudança de hora, este e outros discos saltem de imediato para o porta-luvas do meu carro e sejam a minha agradável companhia durante muito tempo.
E foi, precisamente, a ouvir Johnny Rivers que me recordei de tudo isto e me lembrei de vos vir aqui contar, enquanto o acompanhava em alta voz:
Life is like a mighty river
Rolling on and on forever
Growing as we go along
Shallow deep mind become strong
Rolling on muddy river roll,
Your dirty water cannot taint your soul
Rolling on, rolling on, ‘till you are free
In the peaceful sea
Boa Primavera!
Um abraço do
Luís Mira
* Tenho igualmente o exemplar em vinil, mas confesso-vos a minha ignorância: não sei fazer o “scaner” com redução da imagem…