quinta-feira, 4 de março de 2010

LISBOA AO VOO DO PÁSSARO


Quando há dias Mr. Ié-Ié colocou por aqui a fotografia da placa, que num edifício em Lisboa, nos diz que ali viveu Luis de Sttau Monteiro, ficou à conversa com JC a lembrar um escritor que caiu no completo esquecimento.

Contou então que fora na “Livraria Anglo-Americana,” ali no Cais do Sodré, Rua Bernardino Costa, 32, Lisboa 2 – Telefone 327703, que comprara a edição-fora-do-mercado de “Terra Santa”, que valeu a Sttau Monteiro uns tempos passados em Caxias.

7 de Abril de 1967

O Magalhães Godinho, esta tarde:

O Supremo Tribunal de Justiça negou, por unanimidade o “Habeas Corpus” ao Sttau Monteiro.

E com voz nítida e articulada, para o futuro ouvir bem, repetiu:

- POR UNANIMIDADE.

A palavra “unanimidade” ainda conseguiu assombrar o grupinho…

Nem um, ao menos? Nem um juiz, ao menos?

in José Gomes Ferreira em “Dias Comuns”, Vol. II

Eduardo Olímpio, alentejano de Santiago do Cacém, não teve lições de livros doirados, nasceu entre as dobras de ventos e trigos mas nunca traiu os amigos, como diz numa canção de que é autor, ou “um cavalo de perder corridas” como gostava de se chamar, foi, até ao seu encerramento, empregado da “Livraria Anglo-Americana”.

Com ele estabeleceu laços de amizade e cumplicidade. Quando certos livros chegavam à livraria, e ele sabia que não tardaria muito que a PIDE por lá passasse para os apreender, guardava um exemplar. Sabia o que esta casa gastava.

Gratas recordações. Conversas sem fim. Pena a “Zarzuela” não ter um bagaço decente para acompanhar a bica enquanto se olham as raparigas, dizia o Eduardo já com a cara a avermelhar.

Ao Lado da “Anglo-Americana” havia a Pastelaria “Caneças”. Tempos depois do 25 de Abril, a “Caneças” transformou-se em Boutique do Pão e mais tarde amplia as suas instalações comprando a “Anglo-Americana", onde se vendia um outro tipo de pão.

Um pão vale mais que um Shakespeare?

Alguém a murmurar: words words, words

Em redor da “Anglo-Americana” havia todo um mundo daquilo que todos chamavam porta-aviões.

A barra mansa do “British-Bar”, o velho “English-Bar”, quase um clube inglês daqueles dos romances policiais, hoje está lá uma cervejaria, do outro lado da rua o “Bar Americano” onde o José Cardoso Pires se sentava em silêncio, copo de whisky sobre a mesa e, ao lado, o “Califórnia”, café, restaurante, bilhares na cave, também barbeiro e manicure, kioske de jornais e revistas e o António, ao findar-da-tarde-quase-noite, a fritar uns “pregos”, carregados de alhos, ovo a cavalo, fininhos com dois dedos de espuma.

E se ele um dia perde a memória de tudo isto?

Não quer pensar nisso, chega à janela das traseiras e grita: – “Oh Incas, oh incas, oh sol d’Asía!”.

PS - O título do “post” é roubado ao Mário-Henrique Leiria, a fotografia é tirada, num dia cinzento, por um incrível caixote Kodak, máquina que deixou numa qualquer mesa, num qualquer balcão. A “Anglo-Americana” é naquela esquina onde se pode ver um reclame aos cigarros “Chesterfield”.

Colaboração de Gin-Tonic

14 comentários:

Jack Kerouac disse...

É incrível como alguém consegue expressar-se desta forma, transformando um assunto simples em algo de mágico, a mim fez-me repentinamente transportar para um tempo do qual não me posso lembrar porque não o vivi fisicamente, mas que estas obras de arte do Gin me ter saudades de algo que nunca vi...

Abraço camarada.

Luis Mira disse...

Lisboa desaparecida...

Se muitas das editoras que publicam livros sobre esta cidade não vissem apenas cifrões à sua frente, eram coisas deste género que deviam publicar e não enésimas e estafadíssimas versões do mesmo livro.

Já agora: parece que onde antes estava a livraria está, hoje, aquela que me dizem ser a melhor padaria de Lisboa. Passo por lá de vez em quando, porque não moro muito longe.

Mas à pergunta de Gin-Tonic, respondo sem hesitação: o melhor pão do Mundo não vale o prazer de ver e folhear os livros expostos à maneira do antigamente.

Puro saudosismo...? Nada disso... Amor! E, felizmente, ainda existem por Lisboa e por todo o país livrarias assim. Onde se entra e se sente, imediatamente, que quem se apresenta por detrás do balcão ama, verdadeiramente, as coisas que se dispõe a vender...

Bom fim de semana!

Fernando Correia de Oliveira disse...

Belas recordações, belo texto.
Do Chiado, onde morava, descia todos os dias a esse micro-cosmos que era o Cais do Sodré.
O Califórnia foi o café que o meu pai frequentou durante décadas, no rés do chão, com o seu grupo de amigos; e a cave serviu-me de tirocínio mais ou menos adolescente, mais ou menos ingénuo, de uma certa Lisboa que desapareceu (entrava pelas traseiras, escapulia-me rapidamente pelas escadas, quando o meu pai lá estava e eu não queria que ele me visse a descer ao mundo, para mim misterioso e algo fascinante, dos chulos profissionais que ali apareciam depois de almoço, a "aquecer" para a sua actividade nocturna: jogavam a dinheiro - o Pinto Mamão era o mais célebre, um gentleman, que limpava o dinheirinho a empregados de hotel e de restaurante, não derrubando os paulitos ou tocando o pires no meio da mesa... Já o Faruk era o outro lado da moeda, tinha arranjado a alcunha porque dera uma traulitada num camone, uma madrugada, e depois de lhe roubar a carteira lhe tinha cortado um dedo, porque o anel teimava em não sair...)
Quanto à Anglo-Americana, gastei lá muito do pouco dinheiro que tinha, a comprar livros de bolso em preço de saldo.

M.Júlia disse...

Preciosas memórias!
Descritas de uma maneira que para
mim, chegam a ser comoventes.
Bem haja!

JC disse...

Luís Stau Monteiro, mais do que um escritor, era toda uma filosofia de vida.

ié-ié disse...

Tenho de lá ir fotografar o novo local, mas este tempo...

LT

gin-tonic disse...

A determinado passo o texto fala nisso: onde era a a "Aglo-Americana" hoje é o prolongamento da "Caneças".
A "Caneças" era um leitaria vulgar de lineu. Uma "tia", que terá passado por Paris, convenceu o dono da "Caneças" a trasnformar a leitaria em boutique do pão, principio de uma bela negociata.
O dono da "Anglo-Americana" era também o dono do "British-Bar" e da "Tabacaria Mendonça", tudo no mesmo lado de rua. A "tia" comprou a "Anglo-Americana", pouco depois o dono vendeu o "British-Bar" que, felizmente, não sofreu grandes transformações. O proprietário apenas levou o papagaio e o relógio que aparece na "Cidade Branca" do Tanner. O "British" fecharia para obras logo que as filmagens acabaram. O Silva não o conseguiu demover a deixar o relógio. Mais tarde pediu a um capitão de navio, que parava no "British", que lhe trouxesse um de Copenhaga. É o que agora lá está e esteve em exposição na EXpo 98. Não é bem igual ao original, mas os ponteiros andam ao contrário, que era o que o Silva queria, pois é ex-libris da casa, juntamente com a "ginger beer".

JC disse...

Abençoada "tia", Gin-Tonic. Como te disse, trabalhei cerca de 1 ano no Chiado, + ou - esquina da Victor Cordon c/ a rua, ou calçada, ou Travessa do Ferragial e, como há longos anos me desabituei de almoçar por sistema, ia lá mtªs vezes comer uma ou duas empadas ou sanduíche, sumo e salada de frutas. Uns anos mais tarde tornei-me frequentador do Irish Pub, ao fim da tarde, para uma cerveja, por vezes para jantar e ao fim de semana, aqui e ali, a horas mais noctívagas, principalmente se havia música "ao vivo". Se almoçava "à séria" preferia ir comer umas salsichas ou uma costeleta de porco fumada (Kassler)à Charcutaria Alemã, c/ as suas memórias de espionagem da WWII, que deus lhe tenha a alma em descanso pois já não existe. Outros tempos e outras memórias...

ié-ié disse...

Espera aí, Gin-Tonic, essa coisa dos ponteiros andarem para trás como ex-libris do British Bar de que altura é que é? Mais ou menos.

Depois explico o porquê desta pergunta...

LT

gin-tonic disse...

Caro Ié-Ié:
Não tem elementos para te poder dar uma resposta. Também não sabe quantos gins bebeu no "British", mas não chegou a um milhão.
Mas adianta qualquer coisa: O filme do Tanner é de 1983 e o relógio já lá estava há uns anos. Talvez o relógio, o antigo relógio, esteja lá a partir do final de 1978 ou 1979. O segundo relógio aparece no findar dos anos 80.

filhote disse...

Emocionantes linhas, Gin-Tonic. Obrigado.

Abs

ié-ié disse...

Então, passo a explicar: é que o Hard Rock Cafe original, inglês, Junho de 1970, tem exactamente como ex-libris (um deles) um relógio cujos ponteiros andam, com velocidade, para trás.

Achei piada que outrém tivesse a mesma ideia.

LT

gin-tonic disse...

Quando os dias melhorarem, desceremos a colina e vamos beber uns "gins" ao "British-Bar" e ficar a olhar para o relógio em que o tempo anda para trás.
Aponte na agenda. s.f.f

ié-ié disse...

Está apontado, que eu ainda uso agenda, lápis e borracha.

LT