Ainda o filme não tinha começado, e a sessão já se tornara inesquecível.
Às 13.30h, uma hora antes da estreia de "Living in the Material World", a fila de espectadores dobrava a esquina da Praça Floriano, na Cinelândia, centro da cidade, onde fica situado o tradicional Cinema Odeon, casa-mãe do Festival Internacional de Cinema do Rio 2011.
Entre cinéfilos, melómanos, curiosos, fãs dos Beatles, freaks e beatnicks de todos os tempos, crescia aquele incontido sentimento de expectativa.
"Você sabe se o filme revela imagens da excursão de 1974?", perguntou-me um anónimo, à minha frente, como se eu fosse portador de todas as respostas para todas as questões essenciais da humanidade.
A verdade é que ele acabara de testemunhar o meu encontro com Lizzie Bravo... e, convenhamos, não é para todos ficar "batendo papo" com uma genuína Apple Scruff, na antecâmara da estreia de um documentário sobre George Harrison...
Em cima da hora marcada, 14.30h, as luzes apagaram-se, ecoando o primeiro aplauso, espontâneo, de uma sala completamente lotada. Até os mais obsessivos - incapazes de resistir a um pré-visionamento no YouTube ou levando na mão o DVD oficial do filme - não aguentavam mais. É agora! Vai começar!
De súbito, o golpe de teatro! À idílica imagem do George pintando a casa de Esher, sucedeu o título "Living in the Material World - Part 2".
Imediata reacção do público! Pateadas, gritos de raiva, exclamações de protesto! Inadmissível, uma fraude desta dimensão! Queremos a 1ª parte da fita! Já!!!
Como eu apreenderia (bastante) mais tarde, após mergulhar fundo na vida do fabuloso George, sobreviver no mundo material não é uma experiência pacífica. Há sempre aquele obstáculo, o detalhe mundano, a incontornável insignificância, que nos impede de transcender a existência física das coisas.
Desesperados, os organizadores do festival foram fazendo pela vida, omitindo respostas, inventando desculpas esfarrapadas, tentando resolver um alegado problema no HD do sistema. Entretanto, o tempo foi passando, inexorável... e nós, teimosos, sem arredar pé, mas quase sufocados pela sensação claustrofóbica de quem aguenta o atraso de um voo dentro do avião estacionado...
Duas horas mais tarde, depois de inúmeras manifestações colectivas de inconformismo, começou a correr o rumor, em surdina, de que o problema técnico estaria solucionado. Porém, o filme não iria passar para que não fosse prejudicada a sessão seguinte. Foi o rastilho que incendiou a plateia!
O responsável pela organização foi cercado por espectadores irados, ameaçadores e uma carioca saltou para o palco, de punho erguido, incentivando-nos a entoar o refrão de Lennon: "Power to the People! Power to the People!"
Como o povo unido jamais será vencido, finalmente, às 16.40h, o filme tomou conta da tela.
O que dizer sobre a fita propriamente dita? Complementando o texto aqui inscrito pelo anfitrião deste blogue, considero "Living in the Material World" um verdadeiro filme-documentário. Na forma e conteúdo. Não se trata de um mero documentário musical. Martin Scorsese optou por centrar o foco da narrativa mais na dimensão humana/espiritual do artista, e menos na obra musical.
Além disso, é de realçar os toques de autor... aquela sequência em que irrompe "Blue Jay Way" sobre a imagem, a preto e branco, dos Fab Four em palco no auge da Beatlemania... a leitura, em voz-off, das cartas de George para a Mãe ao longo dos tempos... a maneira como Scorsese sublinha o "quadrado perfeito" dos Beatles, apenas oferecendo o total protagonismo a George quando a banda termina...
Se para realizar um bom documentário é necessária uma personagem forte, pontuada por instigantes "actores secundários", nada falta neste longa-metragem de Martin Scorsese.
Surpreendentes, e reveladores de aspectos fundamentais da personalidade de George Harrison, os relatos de Astrid Kirchherr e Phil Spector. Tocantes, as intervenções de Ray Cooper, Ringo Starr, Paul McCartney, e, sobretudo, Olivia Harrison.
Nos instantes finais do filme, também eu não fui capaz de conter as lágrimas... mas pergunto: será possível (sobre)viver neste mundo material sem provar o doce sabor das emoções?
Pedro de Freitas Branco, no Rio de Janeiro
8 comentários:
Um documentário extraordinário, compra obrigatória para qualquer fã de música. Em Harrison vê-mos a dicotomia humana do bem e do mal, do espiritual e do material, simplesmente fabuloso!
Muito boa crónica, eu como já expliquei noutro lado, gosto de deixar o melhor para o fim, por isso tenho ali o DVD selado, mas não o vou ver antes de ver no cinema. Gosto dessas histórias, principalmente porque no Brasil o povo tem ganho mesmo, perdeu os preconceitos, e mandou passear os tecnocratas que os andaram a roubar durante décadas. Desta vez é tempo de cantar..."aí faz primavera cara, cá estou doente, manda urgentemente algum cheirinho tropical"
Boa, Netote (LFB)! Belo complemento para a crónica!
Jack: vais ficar desvairado com as guitarrinhas que desfilam pelo filme...
Instigante evocação, Filhote! Fez-nos sentir bem no meio da emoção de ver o tempo a passar e o filme sem chegar...
Para nós (bem, para os menos privilegiados...), o Dia D é amanhã. Mas confesso que vou mais pelo Scorsese do que pelo Harrison, do qual, tirando as músicas, a única coisa que conheço é o nosso comum gosto pelos automóveis e pelas corridas de automóveis... Mas, como sempre sucede com os documentários do Scorsese, aposto que sairei a gostar muito mais do que gostava quando entrei...
E, para que te apercebas bem da ignorância deste macaco: quem é Lizzie Bravo...???
Um abraço!
* Lizzie Bravo -> procurar neste blog (tem etiqueta)
* penso que o filme vai dar no Doc Lisboa (não deve ser novidade)
Obrigado!
LM: quem é Lizzie Bravo?!?... está explicado no texto... Apple Scruff... embora seja uma Apple Scruff especial...
Pedro,
Belíssima crónica (apesar dos teus progressivos 'veracruzismos' linguísticos!) à altura da tua dedicação à causa Beatlemaníesca!
Ontem uma alma bondosa lembrou-se de me convidar para assistir à Pt 1 e hoje preparo-me para assistir à 2ª parte.
Para além da excelência e sobriedade do Documentário ( não é definitivamente um filme)também apreciei a companhia acidental de alguns magníficos Ié-iés entre os quais o intermitente Duarte Winston Ono Lennon Loureiro, absolutamente em êxtase.
Um abraço!
p.s. Se um Freitas Branco incomoda muita gente 2 Freitas Branco... ( risos). Grande Netote!
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