segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MÚSICAS DE PASSARINHOS

Naqueles tempos, já um tanto ou quanto isolado nos meus gostos musicais no meio dos meus amigos, agarrava-me com unhas e dentes àquela velha máxima que dizia que a Beleza estava nas coisas simples, levantava bem alto essa bandeira e esgrimia com eles, qual Errol Flynn rodeado de piratas por todos os lados…

Fosse a música “Heavy Metal”, “Hard”, “Acid”, “Progressive Rock”, ou lá o que lhe quisessem chamar, quando toda aquela amálgama instrumental começava a bulir com o meu sensível aparelho auditivo, era certo e sabido que me tinham à perna. Tal qual um mestre-escola de aldeia, pegava no ponteiro e batia-lhes no ombro, dizendo-lhes: “Meninos, deixem-se disso! A beleza está na simplicidade…!”

É claro que ficavam piores que estragados e me pagavam da mesma moeda…

Em boa verdade, havia muito de exagero e radicalismo em tudo o que dizíamos uns aos outros, mas essa era a forma de nos “picarmos” mutuamente. Nem eu odiava, de verdade, todas as “músicas deles” da maneira como lhes dizia que odiava, nem eles desprezavam as “minhas” da forma como o propagandeavam…

As lembranças dessas memoráveis discussões batem-me à porta em catadupa, e deixo-as entrar com um sorriso no rosto…

Opor à raiva de “Born to be Wild”, dos Steppenwolf, a ternura de “Tenderness”, da mesma banda, naquele álbum só para Senhoras…

Dizer-lhes que trocaria, sem pestanejar, todos os “Make Me Smile” ou “25 or 6 to 4”, dos Chicago, pela candura de “Colour My World”…

Vender-lhes Tim Buckley, quando eles me garantiam que Isaac Hayes é que era…

Garantir aos “stoneanos” que nutria muito mais simpatia por “Lady Jane”, “As Tears Go By” ou, mais tardiamente, “Wild Horses”, que cheirava a Gram Parsons por todos os lados, do que propriamente pelo Diabo…

Procurar convencê-los de que os seus queridos “Led Zeppelin” só se safavam de ser irremediavelmente maus, desde que lhes pudéssemos juntar a Sandy Denny, como sucedeu no quarto álbum…

Ou de que, dos Velvet Underground, só se aproveitavam as vocalizações da Nico no álbum da banana, “Pale Blue Yes”, “Candy Says”, “Sunday Morning” e muito pouco mais, mas que isso, por si só, já compensava bem todas as patifarias que eles fizeram à Humanidade…!

Dar a “extrema unção” aos Pink Floyd depois do “Dark Side…”, fazendo-os perceber que a caixa registadora que aí se ouvia era altamente sintomática daquelas que passariam a ser as principais preocupações da banda, a partir desse momento. E jurar a pés juntos que, para mim, a melhor música deles continuava a ser uma coisa tão simples e bela como “If”, do álbum da vaquinha…

Preferir as “doves” do Neil Young acústico aos “hawks” do eléctrico…

Confessar-lhes que era com músicas como “The End”, “Riders of the Storm”, “Blue Sunday” ou “Indiam Summer” que os “Doors” faziam acender o meu fogo interior…

Admitir que, sim senhor, “Bridge…”, “The Boxer”ou “Mrs. Robinson” eram grandes músicas, mas que eu as trocaria a todas, de bom grado, por duas ou três outras dos primeiros tempos (“Kathy’s Song”, “The Sun is Burning”, “Most Peculiar Man”, …)

Quanto aos Beatles, lembro-me de ter chateado os mais fanáticos garantindo-lhes que “Junk”, do primeiro LP do Paul, valia bem por cem “get backs”, com a vantagem de vir em dose dupla…

E de John, sempre preferi músicas como “Love” e “Look at Me”, à florzinha no cano da espingarda de “Imagine”.

Sim, eu sei que muitas dessas letras eram demasiado simplistas e repetitivas, tipo “amorzinho” para ali e “minha querida” para acolá… E que falar de Amor nesses tempos de cólera não era, politicamente, muito correcto. Mas, na parte que me diz respeito, que se lixasse! Nunca precisei muito da letra das músicas para me agitar a consciência…

É que, mesmo no domínio da Folk, música tradicionalmente mais “de intervenção”, esse gosto pelas coisas mais singelas se mantinha: a tristeza serena de “For the Good Times”, do Kris Kristofferson; o minimalismo de Mickey Newbury; a música a saber a terra depois da chuva, do Gordon Lightfoot; a imagem de um caixão a partir numa velha estação de comboios, com “Louise” lá dentro, na canção do Paul Siebel; “Close the Door Lightly”, de Eric Andersen; “Everytime”, do Tom Paxton; “Changes” ou “When I’m Gone”, do Phil Ochs; “Farewell, Farewell”, dos Faiport; “The Game is Over”, do John Denver: “Whithered and Died”, de Richard e Linda Thompson; “Love Hurts”, do Granm Parsons; “Sweet Baby James, pela voz do Tom Rush; Tim Hardin e “Misty Roses”; ….

E mesmo no que respeita ao Deus Dylan, se precisasse de escolher uma música dele para me aconchegar, escolheria “I’ll Be Your Baby Tonight”, assim mesmo baixo, muito baixinho, tal qual ficou gravada no “John Wesley Harding”…

Felizmente, a lista é interminável...

Andávamos nós nestas alegres polémicas quando, um belo dia, lhes levo um disco, penso que da Shirley Collins com os “Albion County Band”. Quem conhece estas sonoridades, sabe bem que não se trata de coisa fácil de entrar nos ouvidos. É uma música com um forte sabor bucólico, rural e medieval, muitas vezes feita apenas de vocalizações “a cappella”, ou então com recurso a instrumentos da época onde pontuam flautas, oboés, harpas e outros afins. Um prazer muito especial, que primeiro se estranha e depois entranha, como diria o Poeta…

Começamos então a ouvir o disco quando, de repente, alguém salta e com um ar vitorioso me dispara à queima roupa: “Afinal, o que tu gostas mesmo é de músicas de passarinhos…!!!”

Foi a risota geral, a começar por mim…

Então estes sacaninhas, que nunca se preocuparam nada com os periquitos de “Cirrus Minor”, dos Pink Floyd, com as gaivotas de Salty Dog, ou com os peidos de “Our Song”, de Waters/Geesin, tinham agora o descaramento de acusar a minha música de ser “de passarinhos”…!!! Haveriam os parvalhões de ouvir, muitos anos mais tarde, “From Gardens Where We Feel Secure”, da Virgínia Astley, para ficarem a saber o que era, não só música de “passarinhos”, mas também de borboletas, pirilampos, vacas, suínos e tudo mais o que mexe no campo…!

O certo é que da fama não me livrei e a expressão ficou para a posteridade. Quando, ao longo dos tempos, nos voltávamos a encontrar pelas esquinas da vida, a inevitável pergunta lá vinha: “E então, como é que estamos de músicas de passarinhos…?”

Mas as discussões não iriam durar muito mais tempo. Cada um de nós foi à sua vida e, a determinada altura, eu próprio me refugiei, de vez, no convento da Música Folk, de onde só saí para o mundo exterior em muito raras ocasiões.

Não o digo com grande orgulho, porque a ignorância nunca aproveita a ninguém, mas confesso-vos que sou perfeitamente incapaz de reconhecer, hoje, uma única música de gente de nomeada como Rick Wakeman, Police, Queen, Aerosmith, Duran Duran, Suzy Quatro, Supertramp, 10CC, AC/DC, B52, Sex Pistols, Clash, Ramones, Ian Dury, Prince, só para referir uns quantos que me vêm agora à cabeça… Passaram-me completamente ao lado, tanto mais que já tinha deixado de ouvir rádio há muito tempo…

Em boa verdade, passei como um autista pela segunda metade dos anos 70 e a maior parte dos 80. Um naufrago perdido no oceano, que só voltaria a dar à costa com as águas suaves de Margo Timmins e dos Cowboy Junkies, e de mais alguma gente dessa época ligada à chamada “estética 4AD”…

Mas esta lenga-lenga de hoje vem a propósito de quê, perguntar-me-ão vocês agora…???

É fácil de explicar: porque me lembrei destas histórias quando, um destes dias, acordei a apetecer-me ouvir “Cadence and Cascade”, dos King Crimson, que também é “música de passarinhos” e uma das minhas preferidas da banda de Robert Fripp.

Ok, perfeito…! Mas o que é que esta nobre gente tem a ver com o que acontece ou deixa de acontecer “in the wake of Luís Mira”…?

Nada, é claro…

Talvez eu esteja mas é saudoso de uma boa polémica sobre estes temas, e queira deitar o barro à parede…

Mas acho que não...

Bem lá no fundo, provavelmente o que me apeteceu foi fazer uma espécie de declaração de Amor a esta Música que amo e com quem vivo há mais de 40 anos…

Perdoem-me, como se deve perdoar a todos os apaixonados.

Bom Outono para todos, quando ele, finalmente, chegar!

Do meu lado, garanto-vos que com muita “música de passarinhos”, que sabe bem ouvir no quentinho, com as folhas a cair lá fora e a chuva a bater leve, levemente, nas vidraças. Como se de uma velha Companheira se tratasse e, ao fim de todos estes anos de vida em comum, ainda nos deitássemos os dois a meio da tarde, de mãos dadas…

Colaboração de Luís Mira

8 comentários:

josé disse...

Como sempre, leio de um fôlego estes sucedânios de artigos a la Phillipe Garnier melhores que os do próprio.

E a essência deste ressuma a algo que já me ocorreu diversas vezes: gostos não se discutem por causa disto. Mas podem e devem mostrar-se porque pode acontecer que se peguem e a mim foi sempre assim que aconteceu.

Quando comecei a ouvir música popular, a primeira coisa que me atraiu foi a melodia. E o ritmo. E depois a mistura dos instrumentos. E as vozes.
Os temas, quase sempre em inglês, eram-me quase indiferentes porque nem os entendia muito bem.
My sweet lord tinha isso tudo misturado e por isso deve ter sido a primeira canção de música popular que me atraiu atenção suficiente para querer saber mais.
E quase ao mesmo tempo, Proud Mary dos CCR e logo a seguir Have you ever seen the rain, particularmente por causa do ritmo e da quebra nos compassos.

E chega de confissões porque isto não deve interessar a ninguém, embora goste de ler as dos outros.

LM disse...

Grande simpatia a sua, José, essa de continuar a fazer a analogia com o PG, autor que conheci graças a si e que percebi que sabe mais de Música e de Cinema a dormir do que eu acordado. Para além de ter privado com os próprios autores...

Um abraço!

LM disse...

...e, já que estamos em maré de troca de repetidos, a minha favorita dos CCR era "Lody". Mas gostava de muitas mais, incluindo as que refere e, aí, estava em perfeita sintonia com os meus Amigos...! Que saudades dessa sequência vertiginosa de exclentes álbuns...

josé disse...

E se em vez de gostos positivos se elencassem os negativos, por qualquer motivo, mesmo irracional?

A minha lista momentânea daria qualquer coisa como:

Oasis que não ouço e não gosto.
Guns & Roses que não suporto.
Tim Buckley tentei, bem tentei mas o timbre da voz que lhe permitia percorrer várias oitavas mesmo assim não me convence a gostar.

Tim Hardin idem.

Television no seu tempo.

Elvis Presley que só ouço mesmo por obrigação.

Black Sabbath que nem sequer o Change ouço com gosto de ouvir.

O folk inglês mais tradicional ou até mais popular dos Steeleye Span que me custa muito a ouvir.

Quase toda a música pop/rock da segunda metade dos oitenta para a frente.
Não consigo ouvir Nirvana. Enerva-me.

O disco ao vivo dos Allman Brothers tido como um expoente da música rock é quase ruído para mim, na maior parte das músicas.

Uma boa parte dos blues originais são inaudíveis. Prefiro as cópias dos Jormas Kaukonen ou dos ingleses que os copiaram.

E por aí fora...

filhote disse...

Instigante!

Este texto merece um livro...

E não te preocupes, Luís, que também eu oiço bastante "música de passarinhos"... ainda agora, Ian Matthews... ou seja, carrego uma belíssima costela de Luís Mira!

Atirando barro à parede:

1. Duran Duran, de nomeada???

2. José: os blues originais são inaudíveis???

LM disse...

Eu já estava noutra, mas alguém me disse que estava aqui uma resposta pendurada, e como estou a trabalhar no escritório, aproveito...

Não quero ser sectário, mas quem gosta de boa música tem de gostar, fatalmente, de algumas "músicas de passarinhos". Ian Matthews é um bom exemplo, mas eu já falei tanto do pobre rapaz que, desta vez, o deixei em paz e sossego.

Quanto aos Duran Duran, eu nunca os ouvi nos dias da vida...! Quando uso a expressão "de nomeada" é no sentido de, numa determinada época, se ter falado muito deles, e não do facto de serem bons ou maus, coisa que, como te disse, desconheço... Falava-se muito mais de DD do que, por exemplo, Dexis Midnight Runners ou Lloyd Cole and The Comotions, só para te referir dois nomes que julgo serem da mesma época e que já conheço um bocadinho melhor, embora sempre mal...

Quanto aos blues originais, e embora esse barro não seja para a minha parede, jugo perceber o que o José quer dizer. As gravações são, muitas vezes, más, o som algo repetitivo e é preciso uma forte dedicação à causa para se entrar bem no âmago dessa música. E ajuda muito conhecer o contexto e a história pessoal de cada autor/intérprete.

Acredito que, nos dias de hoje, não é para todos entrar, de repente, no mundo de Bessy Smith, Blind Lemmon Jefferson ou de Charlie Patton, o homem que vendeu a Alma ao Diabo...!

Talvez que em Mississipi John Hurt seja mais fácil. Mas em alguém da mesma época como Jimmie Rogers, que não é um "bluesman", será, seguramente, muito mais fácil...

Conheço muito boa gente que só chegou aos "blues" depois do "british revival" do início dos anos 60, na qual se incluiam as primeiras músicas dos Stones. Sem essa alavanca, talvez nunca lá fossem parar directamente.

Eu, por exemplo, só passei por lá porque necessitei, para poder perceber melhor toda a evolução da Música Folk tradicional.

Um abraço!

PS: E já sei quem é Lizzie Bravo! Bastou-me ir ao arquivo deste blogue para perceber que tinha andado distraido...

filhote disse...

LM,

Também eu necessitei da alavanca dos Stones, e do John Mayall, para chegar aos Blues.

Talvez por isso, os meus bluesmen favoritos sejam Muddy Waters, Howlin' Wolf, Elmore James, e Robert Johnson.

(se bem que carregue uma paixão pelas senhoras Bessie Smith e Sister Rosetta Tharpe)

Dos Blues brancos, só aprecio até 1966...

Quanto aos Duran Duran e similares neo-românticos, estamos conversados. Entendi o teu argumento.

O problema é que citaste um dos meus singer-songwriters favoritos, com ou sem banda... Lloyd Cole... para mim, o primeiro disco dos Commotions (Rattlesnakes)é obra-prima!

E experimenta lá investigar os últimos LPs do Lloyd Cole que vais ter uma agradável surpresa... especialmente, o último (5 estrelas na Rolling Stone): "Broken Record" (Tapete Records, 2010).

Os Dexy's de Kevin Rowland também são bem interessantes... grandes canções...

Abraço!

LM disse...

Ok!

Mas convenhamos que os "bluesmen" que citas não são, propriamente, os "blues originais" a que o José se devia estar a referir. E sabes, bem melhor do que eu, que deves a Muddy Waters o nome da tua banda preferida...!

Quanto a Sister Rosetta Tharpe, a mulher é literalmente fabulosa e só me espanto por ser tão pouco badalada.

Obrigado pelo conselho do LC. Vou procurar ouvir.

Abraço