terça-feira, 14 de julho de 2009

LOST TRAIN BLUES


Every time I hear the sound of a train coming down the railroad
I get that far away look in my eyes

(Merle Haggard – My Love Affair with Trains)

When a woman gets the blues, she hangs her little head and cries.
But when a man gets the blues, he grabs a train and rides…

(Jimmie Rogers – Train Whistle Blues)

Comboio é desejo de partida, ânsia de chegada… Ver passar o mundo inteiro defronte dos nossos olhos, em ecrã gigante. Cabelo ao vento, fumo a esvoaçar pelo ar, olhar perdido no vazio…

É não estar em lugar nenhum e estar em todos, ao mesmo tempo. Imaginar os sítios onde gostaríamos de ser felizes, se pudéssemos. Liberdade para entrar e liberdade para saltar (you cant’t jump a jet plane, like you can a freight train, já dizia Gordon Lightfoot…).

É tempo de descontracção e de serenidade, como há mais de 70 anos nos lembrava Jimmie Rogers. De acreditar de novo na Vida, se for caso disso…

E de ficar com o corpo todo em “pele de galinha” só de ouvir aquele long whistle blow

Nunca o nosso olhar é tão puro como nesses momentos em que vemos a paisagem passar, de cara encostada à janela. E quantas vezes já não nos apaixonámos, instantânea e perdidamente, por um outro olhar igualmente puro, que passou em sentido contrário a grande velocidade.

Irreversivelmente…

Porque comboio é objecto e lugar de paixão, como nos contava Merle Haggard. Mas também de ternura e de nostalgia por esses tempos da nossa infância em que lhe chamávamos “Pouca terra! Pouca terra!”.

Ou, uns anitos mais tarde, quando perdíamos a respiração durante os combates entre os bons e os maus travados no telhado, ou quando não sabíamos se o “cowboy bom”, montado no seu belo cavalo branco, ainda conseguiria chegar a tempo de fazer parar o comboio, para que este não de despenhasse no vazio deixado pela ponte que os bandidos fizeram explodir…..

Ou quando nos rebolávamos a rir com as aventuras do “Pamplinas Maquinista”. Ou ainda quando, mais crescidotes, nos regalávamos com as comédias de Preston Sturges, ou com a “elipse sexual” do Tio Hitch no “Intriga Internacional”…

A música ensinou-me muita coisa sobre comboios…

Que um simples silvo e uma luz a atravessar a janela podiam tornar-se força de vida e de esperança para os pobres prisioneiros privados de contacto com o mundo exterior:

Let the Midnight Special shine her light on me
Let the Midnight Special shine her ever-loving light on me!

(tradicional)

Que esse mesmo silvo também poderia ser sinónimo de perda:

If you miss the train I’m on
You will know that I’ve been gone
You can hear the wisthle blow
Five hundred miles…

(Heddy West)

Que comboio podia ser uma metáfora da própria vida:

Life is like a mountain rairoad, with an engineer that’s brave

We must make the run successful from the cradle to the grave

Watch the curves, the fills, the tunnels, never falter, never fail

Keep your hand upon the throttle and your eyes upon the rail

(Ernest Thompson)

Ou uma canção de embalar para os viajantes clandestinos:

Go to sleep you weary hobo

Let the towns drift slowly by

Can’t you hear the steel rail hummin’

That’s the hobo’s lullaby

(Woody Guthrie)

Ou de como um velho espiritual se transformou num hino à mobilização, nos tempos do movimento estudantil e da batalha pelos Direitos Civis dos negros:

This train is bound to glory, this train,
This train is bound to glory, this train
This train is bound to glory, and you if you ride you must be holy
This train, my Lord, this train

(tradicional)

Ou, ainda, que há quem goste tanto de comboios que até desejaria ser enterrado junto a uma linha de caminho de ferro, para melhor os ouvir no “outro mundo”:

If you want do to a favor, when I lay me down and die

Dig my grave beside a railroad, so I can hear the train roll by,

So I can hear the train roll by…

(Bud Billings e Carson Robison)

E por aí fora…

Eu falo, falo, mas a verdade é que nunca fiz uma viagem de comboio “a sério” nos dias da minha vida. Infelizmente, sempre me limitei ao Intercidades, entre Lisboa e Porto, e vice-versa…

Mas, para mim, comboio é na América! Que me desculpem todas as linhas exóticas que existem por esse mundo fora (o “Expresso do Oriente”, o “Trans-Siberiano” , o Rovos Rail, em África, e tantos outros….), mas é na América que estão as minhas memórias da música, dos livros, do cinema, …

É lá que estão os meus magníficos heróis da “Folk Music” (John Henry, Casey Jones, Paddy, Railroad Bill, os “tarriers”, etc). Foi com eles que aprendi as histórias da construção do caminho de ferro, da abertura dos túneis a martelo, das alegrias e das tristezas, dos assaltos, dos desastres, das linhas, dos próprios comboios, …

Apesar dessa forte ligação afectiva, nunca consegui andar de comboio nos Estados Unidos. Mas várias vezes me imaginei a fazer de hobo in my mind, como naquela canção do Tom Paxton. E a gritar a plenos pulmões “GOOD MORNING AMERICA, HOW ARE YOU!?” , como o parecia fazer o “City of New Orleans” a que me vou referir no final.

Uma vez, voei de Washington para S. Francisco, numa viagem longa de doze horas que fez escala em vários sítios (St. Louis, Kansas City, Memphis…). Não havia, na altura, muito tempo a perder em comboios, mas ainda hoje estou arrependido dessa minha opção.

Mas se nunca andei de comboio, desta vez meti os butes em muitos deles, dos mais antigos que possam imaginar.

Eu explico-me: tive a sorte de encontrar, em Sacramento, o “Califórnia State Railroad Museum”. É um espaço fascinante, que nos conta a história do “Caminho de Ferro” através dos tempos. Encontramos lá de tudo: as primeiras locomotivas que atravessaram a América, as “bombas” que surgiram décadas depois, tipo “Twentieth Century”, ao qual Howard Hawks dedicou uma excelente e pouco conhecida comédia; as “carruagens-restaurante“ que tanto nos habituámos a ver no cinema; as “carruagens-correio”; e por aí fora, não faltando a reprodução de antigas estações de comboio. A fotografia que vos deixo não faz honra ao lugar. Ficou desfocada, mas é melhor que nada…

Durante o resto da viagem, cruzei-me algumas vezes com comboios na paisagem. Mas, ou não tinha a máquina fotográfica à mão, ou então ficava tão embevecido a olhar que, quando me lembrava já era demasiado tarde para os “apanhar” convenientemente…

Com o desenvolvimento dos transportes e a redução do custo dos bilhetes de avião, o transporte de passageiros em comboio tem vindo a decrescer, mantendo-se, sobretudo, o de mercadorias. E isso era bem visível nos comboios que encontrei, que quase mais não eram do que comboios de contentores…

Acerca desse declínio do comboio, Utah Philips fez uma curiosa canção em que um filho pergunta ao seu pai Daddy, what’s a train?, e este lhe responde com nostalgia, lembrando-se das aventuras da sua adolescência, das cumplicidades com os maquinistas, das histórias contadas pelos viajantes clandestinos (hobos), …

Esta “crónica” já vai longa e não vos quero maçar mais. Porque se lê rapidamente, deixo-vos com a letra de uma música que sempre me deixou essa sensação de um mundo em extinção e da nostalgia desses comboios dos velhos tempos.

Conta uma viagem de dois dias em comboio, entre Chicago e New Orleans. Escreveu-a, em 1970, Steve Goodman, que viria a morrer de doença muito novinho, vai fazer este ano precisamente 25 anos.

Nem uma linha lhe vão dedicar, como é costume…

CITY OF NEW ORLEANS

Riding on the “City of New Orleans”
Illinois Central Monday morning rail
Fifteen cars and fifteen restless riders
Three conductors and twenty-five sacks of mail
All along the southbound odyssey
Roll along past houses, farms and fields
Passing towns that have no names
Freight yards full of old black men
And the graveyards of rusted automobiles


Good morning America, how are you?

Don’t you know me I’m your native son
I’m the train they call “The City of New Orleans”
I’ll be gone five hundred miles when the day is done

Dealing cards with the old men in the club car
Penny a point, ain’t no one keeping score
Won’t you pass the paper bag that holds the bottle
Feel the wheels running beneath the floor
Ant the sons of Pullman porters
And the sons of engineers
Ride their father’s magic carpet made of steam
Mothers with their babes asleep
Are rocking the gentle beat
And the rhythm of the rails is all they dream

Good morning America, how are you

…………………………………………
…………………………………………

Night time on “The City of New Orleans”
Changing cars in Memphis, Tennessee
Half away home, and we’ll be there by morning
Through the Mississippi darkness
Rolling down to the see
And all the towns and people seem
To fade to a bad dream
And the steel rails still ain’t heard the news
The conductor sings his songs again
The passengers will please refrain
This train’s got the disappearing railroad blues

Good morning America, how are you?

Colaboração de Luís Mira

8 comentários:

josé disse...

Fabulosa evocação dos combóios na América.

Isto merece livro com imagens e ilustrações. Uma revista de cultura geral que falta em Portugal, com um texto destes, era motivo de capa.

A canção de Goodman está bem replicada no You Tube com algumas versões amadoras bem interessantes.
A melhor para mim, é a de Arlo Guthrie que guardo em disco vinílico.

Mas há também a versão bem interessante de um improvável Joe Dassin com Salut les Amoureux

No entanto a que me provoca pele de galinha sonora é esta do falecido Jerry Reed, pelo picking.

Nafr disse...

muito bom!

M.Júlia disse...

Belíssimo texto!

Luis Mira disse...

Obrigado pelo incentivo!

José,
Eu sou um nabo nestas novas tecnologias e só dou pelo You Tube quando alguém me faz o favor de inviar um "link", como foi o seu caso.
Obrigado, também, pela dica sobre o Jerry Reed, cuja interpretação desconheço de todo. Tratarei de a ouvir à noite, em casa.
Eu também acho que conheci, primeiro, as versões do Arlo Guthrie e do John Denver, que tenho em vinil, e só depois prucurei ter acesso à versão original.

josé disse...

O Jerry Reed é um guitarrista que acho fabuloso pelo estilo.

No You Tube há duas ou três coisas espantosas, do tipo.

Por exemplo, esta.

Tenho dois discos em vinil e comprei mais 6 no ebay. Fui aldrabado. Paguei e nunca os recebi.

Foi a segunda vez que me sucedeu. A primeira foi igualmente com um lote de discos dos Nitty Gritty Dirt Band.

Não sei o que sucedeu. Pode muito bem ter desaparecido, sei lá, na Alfândega.

Já foi há uns anos, mas não foi suficiente para aprender.

josé disse...

Ou esta

ié-ié disse...

Já tenho uns bons anos de eBay e por uma única vez fui aldrabado e... por um português que assinava "paulinho da viola" e no paypal estava como "paulodragao".

Agora mesmo, curiosamente, um outro tuga colocou 1 disco no eBay e escreveu: "turtles she's my girl rare portugal ep ps beatles" e eu perguntei o que é que os beatles tinham a ver com o ep.

E o tuga respondeu:

"nada, é só para chamar mais clientela!".

Ah ganda tuga!

LT

DANIEL BACELAR disse...

Pois é Luis
Também já comprei muita coisa na Ebay e não tenho a minima razão de queixa.
Essa historia que contas do português é tipica do "chico espertismo á portuguesa".
É uma enorme tristeza,pois é nestas pequenas coisas que acabamos por perceber porque é que estamos nesta trêta há 35 anos já não contando com o resto....e tenham calma que vamos continuar na mêsma....senão pior!!!
MAS SOMOS UNS ESPERTALHÕES!!!!!!