Iam os anos sessenta a meio, mais precisamente Outubro de 1965, quando, com a cumplicidade de um trabalhador da “Livraria Clássica Editora”, junto ao antigo Cinema Eden, onde hoje está a “Loja do Cidadão”, encontrou-se perante uma “Antologia de Poesia Portuguesa do Pós Guerra”, organizada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira, publicada pela Editora Ulisseia.
No dia seguinte a PIDE procedeu à apreensão do livro.
Pela leitura da antologia verificou que o seu conhecimento da moderna poesia portuguesa roçava o escandaloso.
Pediu ajuda para colmatar as lacunas e aconselharam-no, para começo, comprar ou ler, todos os volumes da “Colecção Poetas de Hoje”, então editados pela “Portugália Editora”.
Aos poucos foi comprando os livros e abriram-se horizontes sobre José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Egito Gonçalves, António Gedeão, Carlos de Oliveira, António Reis, Reinaldo Ferreira, tantos outros.
Acontece que o nº 9 da Colecção é um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto: “Poemas Escolhidos”.
Maravilhou-se com o Auto de Natal Pernambucano “Morte e Vida Severina” .
O subdesenvolvimento, o drama do homem do nordeste brasileiro, que é também o drama de outros homens, em outros nordestes, espalhados pelo mundo, onde a luta contra os problemas de sobrevivência é uma tarefa diária.
Josué de Castro em “Sete Palmos de Terra e um Caixão”:
“No Nordeste, as marcas mais fundas da presença do Homem, parece não serem as marcas da sua vida, mas as marcas da sua morte.”
O poema está largamente sublinhado a lápis. Também ele ficou marcado.
Da sua leitura ressalta o quanto são pobres as razões da esperança, mas a obrigação que por ela há que lutar: “porque muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás”.
No prefácio a estes “Poemas Escolhidos”, Alexandre Pinheiro Torres considera “Morte e Vida Severina” um dos mais belos poemas de toda a literatura em língua portuguesa, obra-prima incontestável”.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(...)
— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra inteira.
— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
Colaboração de Gin-Tonic
2 comentários:
Este post já me levou a ler o poema na íntegra! Obrigatório!
Obrigado, Gin-Tonic!!!
Os olhares dos amigos são assim, vêem coisas que mais ninguém enxerga, mas têm aquele brilho que nos trasmite o gosto de ter o dia ganho, e isso, nos tempos amargos que correm é uma dádiva.
Quando o português mediocre que arrasto pelas colunas do "Ié-Ié", as escolhas que faço, dão azo a que, pelo menos um viajante, corra a ouvir o disco, a ler o livro, é uma alegria a que apenas quem a sente tem acesso e dela não sabe, não quer falar.
É este o dia ganho, o que comsegue ainda transmitir luz para outros dias.
Um grande abraço.
Enviar um comentário