quarta-feira, 1 de setembro de 2010

RAY CHARLES


A VOZ DO DONO - 7 LEM 3103 - edição portuguesa (1964?)

I Can’t Stop Loving You – Hide ‘Nor Hair – You Don’t Know Me – Unchain My Heart

Ray Charles

Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural,
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de blak e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a mística do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos brancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.
Cego e negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam»
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

15 de Março de 1964

Poema de Jorge de Sena do livro “Sequências” (1980)

Nota do Escriba: O poema é transcrito de “Poezz, Jazz na Poesia em Língua Portuguesa”, Antologia organizada por José Duarte e Ricardo António Alves, Almedina, Maio de 2004. Comentário de José Duarte sobre Ray Charles: “Ao princípio tudo para ele era negro, de repertório em pequenos grupos típicos que o acompanhavam – “The Raelets”, depois foi enriquecendo e pela primeira vez na Europa, em Paris, eram os 60 uma criança, apresentou-se de loira esguia, alta, esbelta, escandinava que o levava ao piano e o ia buscar. Sabe pilotar. Aviões".

Colaboração de Gin-Tonic

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