Comecei por me encaixar hoje, pouco depois das 10 da manhã, no sofá da sala, deitado e tapadinho que o tempo está incerto. Abri a companhia do “jazz” e agrupei três relíquias finalmente adquiridas: dois CDs do Herbie Hancock, editados nos finais dos anos 60, e um do Keith Jarrett em trio, de 1991. Mas tive de mudar de posição: ler pela manhã na sala da minha casa não pode ser feito contra a janela do lado nascente – mal conseguia fixar as letras das 29 páginas que me faltavam para completar a leitura das “Crónicas da América” do Luis Miguel Mira. Virei, assim o fofo das almofadas por 180 graus e a luz inundou calmamente as páginas sem me ferir a visão matinal adormecida.
Estou aqui para cumprir mais um desafio do meu editor e amigo José Borges Marques, e só há oito dias conheci o autor, cujo rosto, confesso, não me é estranho. Será verdade, Luís?
Apresentar um livro não é, na minha opinião, o mesmo que criticar – deixo isso para os espertos, tradução livre para “experts”, e como todos sabemos em Portugal há muitos espertos entendidos em quase todas as matérias.
Assumir o papel que hoje me atribuíram não é também desfilar um rosário de banalidades valorosas, sem pés nem cabeça, sobre o autor e a obra em causa, um panegírico sem sentido. Falar deste livro – aprendi folha a folha – só é possível depois de o lermos, entrando nele pela “Route 66”, por exemplo, e vogar por um país que é um continente de histórias tão intensas quanto a distância que separa Chicago de Los Angeles. O Luis e a Cristina fizeram-no.
Não sou um cinéfilo, nunca entrei na Cinemateca (acho eu), apesar de ter passado muitas horas de Sol nos bastidores da Velha Tóbis, enquanto o meu tio e padrinho de baptismo filmava “A Cruz de Ferro”, meio perdido entre as maquetas de uma aldeia minhota ali reconstruída.
Como o Luís é um estudioso da indústria cinematográfica, com ele aprendi os movimentos da câmara a filmar, revendo alguns dos títulos já esquecidos de filmes marcantes, os realizadores, os argumentistas, o escritor clássico e o livro que inspiraram o guião, os artistas, as épocas.
Por acréscimo, surge a música e alguns dos meus/nossos heróis; Gram Parsons, porque abre a primeira crónica e fundou uma das minhas bandas de referência, os Byrds (tenho uma guitarra igual à do líder do Roger McGuinn que muito trabalho me deu conseguir em Paris), Bob Dylan e Woody Guthrie, Springsteen, Otis Redding e naturalmente os Doors do meu primo Morrison, a banda que colocou Los Angeles no roteiro da música popular, também Nat “King” Cole que o meu pai, tenor que apenas soletrava a palavra inglesa “offside”, com o “f” mais em “v”, imitava para deleita da minha Mãe.
E depois há Steinbeck, Hitchcock, James Dean, John Wayne, Marilyn Monroe e Arthur Miller, que aprendi a ler por causa desse meu tio/padrinho actor, Antonioni e John Ford e tanta coisa que a película registou antes de eu ter nascido, que o Luis conhece, enaltece e revela como só um apaixonado muito bem documentado pode partilhar connosco. Os “westerns”, que revelam a imensidão do continente americano, têm aqui uma expressão muito particular.
Este livro é uma viagem pelos locais onde muitos filmes foram realizados, com o escritor e a sua Bonnie (Cristina em português), calcorreando passeios, tocando os objectos, olhando em privado e estarrecidos a amplitude dos locais: serras, lagos, pequenos hotéis de estrada ou luxuosos casinos, bares e restaurantes, barcos, ancoradouros e rios, prisões, lugares de culto que a lente focou, e o espaço sem fim dos desertos, as florestas, as estradas do tamanho do horizonte.
Revelo-te um segredo meu, caro Luís: também sou coleccionador de pequenos faróis que me levam a um momento qualquer do meu passado, talvez às tramóias dos “Cinco” que ambos lemos. Sem esquecer outro ponto em comum: o “Mundo de Aventuras” e o “Falcão”, onde também havia o super-agente ENE 3.
Este é um livro de palavras com fotos, mas onde as palavras e as histórias valem por si quando nos abrem a imagem das emoções que o Luís foi vivendo em cada lugar - viajamos assim sem sair do sofá. Na página 51, a propósito, escreverá: “Mostrar-vos fotografias a pretexto de outras coisas, ou falar de outras coisas a pretexto das fotografias…”.
Por vezes entrei pela “estrada fora” como Jack Kerouac, esta pulsão para a viagem e a descoberta, o trilho e os comboios que apaixonam o autor, apesar da viagem ser feita de “Chevrolet”. E o requinte dos vinhos que foi degustar à Califórnia em refeições opíparas estou-me a lembrar das ostras compradas no barracão, apesar do barracão -, debruçadas em paisagens que homens e mulheres do celulóide, suas paixões e misérias, sorveram num tempo só de urgência. Ao invés este é um livro calmo, em ecrã gigante com melodia sofisticada, enquanto o charuto arde mansamente e a voz “off” comenta.
Apaixonei-me na adolescência pela cultura americana e aquilo a que pomposamente chamávamos contra-cultura: literatura e discos aos molhos enchem salas na minha casa, coleccionados desde a adolescência. Com o tempo e os disparates da arrogância belicista americana, em que uma família de “Bosques” se prolongou até ao enjoo e à desgraça, afastei-me daqueles que vivem do outro lado deste Atlântico que nos afaga as praias. Contigo, no seguimento do velhinho “Easy Rider” que vi pela primeira vez há muito tempo numa esplanada do Laranjeiro a céu aberto, reabri a janela da emoção dessa grande nação capaz de tudo, do pior ao melhor.
Por fim, dir-vos-ei que gosto dos lisboetas que ao domingo atravessam o Tejo de barco, aportam ao cais da Trafaria - uma das praias chiques de Lisboa no princípio do século passado – e se deliciam com os petiscos à base de peixe e marisco que os deste lado (daquele onde nasci e vivo) sabem cozinhar para os forasteiros.
Foi assim que conheci o Luis Miguel Mira e a Cristina num domingo, por causa de outro Luís, Pinheiro de Almeida, velho camarada da arte musical.
Termino com uma citação do primo acima referido: “Os filmes são colecções de imagens mortas às quais é dada inseminação artificial”.
Como se sabe o rapaz deixou os estudos cinematográficos na UCLA e fundou os Doors, para nosso bem. De filmes percebes tu.
Obrigado por este privilégio.
Aroeira, 17 de Abril de 2010
Texto de António Manuel Ribeiro
Fotografia de Teresa Lage
Estou aqui para cumprir mais um desafio do meu editor e amigo José Borges Marques, e só há oito dias conheci o autor, cujo rosto, confesso, não me é estranho. Será verdade, Luís?
Apresentar um livro não é, na minha opinião, o mesmo que criticar – deixo isso para os espertos, tradução livre para “experts”, e como todos sabemos em Portugal há muitos espertos entendidos em quase todas as matérias.
Assumir o papel que hoje me atribuíram não é também desfilar um rosário de banalidades valorosas, sem pés nem cabeça, sobre o autor e a obra em causa, um panegírico sem sentido. Falar deste livro – aprendi folha a folha – só é possível depois de o lermos, entrando nele pela “Route 66”, por exemplo, e vogar por um país que é um continente de histórias tão intensas quanto a distância que separa Chicago de Los Angeles. O Luis e a Cristina fizeram-no.
Não sou um cinéfilo, nunca entrei na Cinemateca (acho eu), apesar de ter passado muitas horas de Sol nos bastidores da Velha Tóbis, enquanto o meu tio e padrinho de baptismo filmava “A Cruz de Ferro”, meio perdido entre as maquetas de uma aldeia minhota ali reconstruída.
Como o Luís é um estudioso da indústria cinematográfica, com ele aprendi os movimentos da câmara a filmar, revendo alguns dos títulos já esquecidos de filmes marcantes, os realizadores, os argumentistas, o escritor clássico e o livro que inspiraram o guião, os artistas, as épocas.
Por acréscimo, surge a música e alguns dos meus/nossos heróis; Gram Parsons, porque abre a primeira crónica e fundou uma das minhas bandas de referência, os Byrds (tenho uma guitarra igual à do líder do Roger McGuinn que muito trabalho me deu conseguir em Paris), Bob Dylan e Woody Guthrie, Springsteen, Otis Redding e naturalmente os Doors do meu primo Morrison, a banda que colocou Los Angeles no roteiro da música popular, também Nat “King” Cole que o meu pai, tenor que apenas soletrava a palavra inglesa “offside”, com o “f” mais em “v”, imitava para deleita da minha Mãe.
E depois há Steinbeck, Hitchcock, James Dean, John Wayne, Marilyn Monroe e Arthur Miller, que aprendi a ler por causa desse meu tio/padrinho actor, Antonioni e John Ford e tanta coisa que a película registou antes de eu ter nascido, que o Luis conhece, enaltece e revela como só um apaixonado muito bem documentado pode partilhar connosco. Os “westerns”, que revelam a imensidão do continente americano, têm aqui uma expressão muito particular.
Este livro é uma viagem pelos locais onde muitos filmes foram realizados, com o escritor e a sua Bonnie (Cristina em português), calcorreando passeios, tocando os objectos, olhando em privado e estarrecidos a amplitude dos locais: serras, lagos, pequenos hotéis de estrada ou luxuosos casinos, bares e restaurantes, barcos, ancoradouros e rios, prisões, lugares de culto que a lente focou, e o espaço sem fim dos desertos, as florestas, as estradas do tamanho do horizonte.
Revelo-te um segredo meu, caro Luís: também sou coleccionador de pequenos faróis que me levam a um momento qualquer do meu passado, talvez às tramóias dos “Cinco” que ambos lemos. Sem esquecer outro ponto em comum: o “Mundo de Aventuras” e o “Falcão”, onde também havia o super-agente ENE 3.
Este é um livro de palavras com fotos, mas onde as palavras e as histórias valem por si quando nos abrem a imagem das emoções que o Luís foi vivendo em cada lugar - viajamos assim sem sair do sofá. Na página 51, a propósito, escreverá: “Mostrar-vos fotografias a pretexto de outras coisas, ou falar de outras coisas a pretexto das fotografias…”.
Por vezes entrei pela “estrada fora” como Jack Kerouac, esta pulsão para a viagem e a descoberta, o trilho e os comboios que apaixonam o autor, apesar da viagem ser feita de “Chevrolet”. E o requinte dos vinhos que foi degustar à Califórnia em refeições opíparas estou-me a lembrar das ostras compradas no barracão, apesar do barracão -, debruçadas em paisagens que homens e mulheres do celulóide, suas paixões e misérias, sorveram num tempo só de urgência. Ao invés este é um livro calmo, em ecrã gigante com melodia sofisticada, enquanto o charuto arde mansamente e a voz “off” comenta.
Apaixonei-me na adolescência pela cultura americana e aquilo a que pomposamente chamávamos contra-cultura: literatura e discos aos molhos enchem salas na minha casa, coleccionados desde a adolescência. Com o tempo e os disparates da arrogância belicista americana, em que uma família de “Bosques” se prolongou até ao enjoo e à desgraça, afastei-me daqueles que vivem do outro lado deste Atlântico que nos afaga as praias. Contigo, no seguimento do velhinho “Easy Rider” que vi pela primeira vez há muito tempo numa esplanada do Laranjeiro a céu aberto, reabri a janela da emoção dessa grande nação capaz de tudo, do pior ao melhor.
Por fim, dir-vos-ei que gosto dos lisboetas que ao domingo atravessam o Tejo de barco, aportam ao cais da Trafaria - uma das praias chiques de Lisboa no princípio do século passado – e se deliciam com os petiscos à base de peixe e marisco que os deste lado (daquele onde nasci e vivo) sabem cozinhar para os forasteiros.
Foi assim que conheci o Luis Miguel Mira e a Cristina num domingo, por causa de outro Luís, Pinheiro de Almeida, velho camarada da arte musical.
Termino com uma citação do primo acima referido: “Os filmes são colecções de imagens mortas às quais é dada inseminação artificial”.
Como se sabe o rapaz deixou os estudos cinematográficos na UCLA e fundou os Doors, para nosso bem. De filmes percebes tu.
Obrigado por este privilégio.
Aroeira, 17 de Abril de 2010
Texto de António Manuel Ribeiro
Fotografia de Teresa Lage
9 comentários:
o AMR é afilhado do Jorge Brum do Canto ??
(Li na diagonal)
Excelente apresentação, como tive oportunidade de dizer pessoalmente ao AMR, mesmo um pequeno excesso sem importância se perdoa, pois realmente teve o cuidado de preparar um texto muito bom, para evitar a tal apresentação banal em que se elogia exageradamente o apresentado, muitas vezes sem se saber porquê. De resto esteve tudo muito bem, o meu exemplar irá direitinho para o lado do "On The Road", depois de o reler.
"...enquanto o meu tio e padrinho de baptismo filmava “A Cruz de Ferro”..."
"Filmava" pode ter vários significados desde o Realizador, passando por toda a equipa técnica, onde pontificava como Chefe-electricista o "seca-adegas", provavelmente parente - pai? ;-) - da mulher do ilustre Embaixador britânico em Lisboa, até aos actores.
Onde encaixa o tio e padrinho do António Manuel Ribeiro?
Tal como tive oportunidade de dizer e de escrever ao António Manuel Ribeiro, o privilégio é inteiramente meu, que fui um sortudo por o ter tido como "Apresentador"...
O texto dele é belíssimo, e se houver alguma reedição do livro (coisa que duvido...) vou ter de lhe pedir autorização para incluir este texto como "Prefácio".
Com riscos de me repetir e de vos maçar, não posso deixar de aproveitar mais esta oportunidade para aqui deixar, de novo, o meu Muito Obrigado! ao António.
O texto é de facto belíssimo. Tive exactamente o mesmo pensamento do Luís Mira sobre a sua inclusão como "Prefácio" numa 2ª edição.
Apesar do texto ser belíssimo acho que "ao vivo" ainda foi melhor!
Um abraço ao Luís Mira e boa sorte porque este livro merece ser lido.
Bela apresentação. E, Luís Mira, parece-me uma excelente ideia incluir este texto, como prefácio, na 2ª edição.
Se me é permitida uma correção, quanto ao texto de AMR, Gram Parsons não foi fundador dos Byrds...
Os Byrds foram fundados por Jim McGuinn (depois Roger), Gene Clark, David Crosby, Chris Hillman, e Michael Clarke.
Após o 2º LP, "Turn! Turn! Turn!" (Columbia, 1965), Gene Clark sai da banda, mantendo-se o quarteto original até ao 4º LP, "Younger Than Yesterday" (Columbia, 1967).
Do 4º disco para a frente, os Byrds transformam-se num entreposto de notáveis músicos, comandados por Roger McGuinn. Embora excelentes discos se sucedam, os Byrds não voltam a ser os mesmos...
Gram Parsons foi um dos notáveis músicos que passou, rapidamente, pelos Byrds, tendo, porém, uma influência enorme no excelente LP "Sweetheart of the Rodeo" (Columbia, 1968).
Com menos de um ano de estadia nos Byrds, Parsons acabou por sair durante uma frustrante digressão pela África do Sul (Verão de 1968).
Gram Parsons, como já aqui escrevi várias vezes, é também um dos meus heróis!
Este Filhote é um desmancha-prazeres!
Nice!
Já agora, além do AMR e da Teresa Lage,quem mais conhece "Estórias" engraçadas da Tóbis?
Não, anónimo, não quis desmanchar o prazer de ninguém!
Pelo contrário, que eu sei como o Luís Mira gosta destas dissertações pela música americana.
Além disso, a minha pequena correção não belisca minimamente a excelência do texto de AMR. Gram Parsons ser ou não ser fundador dos Byrds em nada adultera o sentido da apresentação-futuro-prefácio.
Apenas aproveitei para dissertar, reparando numa insignificante imprecisão histórica.
Abraços!
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