A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. A estrada 66 – a longa faixa de cimento que corta as terras, ondulando para cima e para baixo, no mapa, de Mississipi a Bakersfield – atravessa as terras vermelhas e as terras pardas, galga as elevações, cruza as Montanhas Rochosas, penetra no luminoso e terrificante deserto e, cruzando este, torna a entrar nas regiões montanhosas até alcançar os férteis vales da Califórnia.
A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isto os homens fugiam e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.
John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”
Contei-vos na última “crónica” que a passagem pela Route 66 me tinha feito recordar o êxodo das populações rurais do midwest devido aos efeitos da seca e do “Dust Blow”. Numa época já de si conturbada, em que se faziam sentir fortemente os efeitos da crise de 1929, tanto a seca, por um lado, como as tempestades de areia, por outro, arrasavam as últimas esperanças de sobrevivência dos pobres camponeses do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México, Tennessee, … Fortemente endividados à banca ou incapazes de pagar as suas rendas aos grandes proprietários rurais, estas populações foram obrigadas a abandonar as suas terras e a lançarem-se à estrada, na esperança de uma vida melhor, quase sempre nos verdejantes campos da Califórnia. Carregavam as suas velhas carripanas com os poucos bens que tinham conseguido salvar, e lançavam-se à aventura… Mas nem sempre se podiam, dar ao “luxo” de ir de carro… Às vezes não tinham mais do que um simples carrinho de mão, como poderão ver numa das fotografias que vos envio. Ao mesmo tempo, os tractores avançavam pelos campos e deitavam abaixo todas as construções que por lá encontrassem, para impedir aos anteriores ocupantes qualquer veleidade de regresso.
É uma época da História dos Estados Unidos de que sempre gostei muito. Época de extremos, em que o “Sistema” mostrou o seu lado mais negro: a impiedosa ditadura dos bancos e dos grandes “landowners”, a exploração dessa imensa mão-de-obra nos campos da Califórnia, vivendo em condições infra-humanas, a cumplicidade entre as polícias locais e os proprietários rurais para abafar, pela morte se necessário, todas as tentativas de rebelião… Mas foi também, por outro lado, uma época de grandes batalhas sociais na qual veio ao de cima a dignidade de todo um povo, a sua capacidade de união e de solidariedade para lutar com determinação contra essas mesmas adversidades…
Felizmente, foi também uma época que a Arte, com A grande, fixou para a posteridade: na Literatura, através dessa obra-prima de John Steinbeck que foi “As Vinhas da Ira” (1939); no Cinema, não só com a adaptação desse mesmo livro feita por John Ford (1940), mas também com outros filmes que, com as devidas distâncias, navegavam nas mesmas águas, como foi o caso de “Tobacco Road” (1941), do mesmo Ford, de “Our Daily Bread” (1934), de King Vidor, ou “The Southerner” (1945), de Jean Renoir, …; na Música, com as célebres “Dust Blow Ballads”, que Woody Guthrie, fortemente impressionado com o livro de Steinbeck, escreveu entre 1937 e 1941, e que constituem o melhor e mais coerente conjunto de “canções de intervenção” que conheço; finalmente, na Fotografia, através do trabalho dos fotógrafos da “Farm Security Administration” (FSA), que Roosevelt enviou para os campos com um claro intuito de propaganda política. Roosevelt tinha afirmado em 1936, num discurso que ficou célebre, “Vejo um terço da nação mal alojado, mal vestido e mal alimentado”, e contava com o apoio desses fotógrafos para documentarem, no terreno, os graves problemas sociais resultantes da Grande Depressão e justificarem, assim e aos olhos de toda a população, as políticas sociais do New Deal. Alguns desses fotógrafos, como foi o caso de Dorothea Lange, acompanharam sistematicamente essas populações em fuga, concretizando, nessa altura, a parte mais notável de toda a sua obra.
Colaboração de Luís Mira
A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isto os homens fugiam e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.
John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”
Contei-vos na última “crónica” que a passagem pela Route 66 me tinha feito recordar o êxodo das populações rurais do midwest devido aos efeitos da seca e do “Dust Blow”. Numa época já de si conturbada, em que se faziam sentir fortemente os efeitos da crise de 1929, tanto a seca, por um lado, como as tempestades de areia, por outro, arrasavam as últimas esperanças de sobrevivência dos pobres camponeses do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México, Tennessee, … Fortemente endividados à banca ou incapazes de pagar as suas rendas aos grandes proprietários rurais, estas populações foram obrigadas a abandonar as suas terras e a lançarem-se à estrada, na esperança de uma vida melhor, quase sempre nos verdejantes campos da Califórnia. Carregavam as suas velhas carripanas com os poucos bens que tinham conseguido salvar, e lançavam-se à aventura… Mas nem sempre se podiam, dar ao “luxo” de ir de carro… Às vezes não tinham mais do que um simples carrinho de mão, como poderão ver numa das fotografias que vos envio. Ao mesmo tempo, os tractores avançavam pelos campos e deitavam abaixo todas as construções que por lá encontrassem, para impedir aos anteriores ocupantes qualquer veleidade de regresso.
É uma época da História dos Estados Unidos de que sempre gostei muito. Época de extremos, em que o “Sistema” mostrou o seu lado mais negro: a impiedosa ditadura dos bancos e dos grandes “landowners”, a exploração dessa imensa mão-de-obra nos campos da Califórnia, vivendo em condições infra-humanas, a cumplicidade entre as polícias locais e os proprietários rurais para abafar, pela morte se necessário, todas as tentativas de rebelião… Mas foi também, por outro lado, uma época de grandes batalhas sociais na qual veio ao de cima a dignidade de todo um povo, a sua capacidade de união e de solidariedade para lutar com determinação contra essas mesmas adversidades…
Felizmente, foi também uma época que a Arte, com A grande, fixou para a posteridade: na Literatura, através dessa obra-prima de John Steinbeck que foi “As Vinhas da Ira” (1939); no Cinema, não só com a adaptação desse mesmo livro feita por John Ford (1940), mas também com outros filmes que, com as devidas distâncias, navegavam nas mesmas águas, como foi o caso de “Tobacco Road” (1941), do mesmo Ford, de “Our Daily Bread” (1934), de King Vidor, ou “The Southerner” (1945), de Jean Renoir, …; na Música, com as célebres “Dust Blow Ballads”, que Woody Guthrie, fortemente impressionado com o livro de Steinbeck, escreveu entre 1937 e 1941, e que constituem o melhor e mais coerente conjunto de “canções de intervenção” que conheço; finalmente, na Fotografia, através do trabalho dos fotógrafos da “Farm Security Administration” (FSA), que Roosevelt enviou para os campos com um claro intuito de propaganda política. Roosevelt tinha afirmado em 1936, num discurso que ficou célebre, “Vejo um terço da nação mal alojado, mal vestido e mal alimentado”, e contava com o apoio desses fotógrafos para documentarem, no terreno, os graves problemas sociais resultantes da Grande Depressão e justificarem, assim e aos olhos de toda a população, as políticas sociais do New Deal. Alguns desses fotógrafos, como foi o caso de Dorothea Lange, acompanharam sistematicamente essas populações em fuga, concretizando, nessa altura, a parte mais notável de toda a sua obra.
Colaboração de Luís Mira
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