Por motivos que o Ié-Ié conhece enquanto blogue mais bem informado sobre a minha vida do que o Wikileaks, há duas semanas, mais ou menos, fui pela primeira vez a Liverpool.
Porquê ir para esta cidade em pleno Dezembro, apanhar chuva e frio, duas manifestações de um clima impiedoso e impróprio para gastar um dia de férias? Porque ouvi dizer que havia por lá uma coisa bizarra. Uma piscina de fígados, junto ao rioMersey, a que a cidade devia o seu nome e que me garantiam a pés juntos constar num daqueles sapientes livros da Taschen como um dos 1001 locais que se devem ver na vida.
É tudo mentira. Na verdade, a segunda razão por que fui a Liverpool é porque se trata do berço dos Beatles, de que sou fã. A primeira é mais prosaica. Queria confirmar se era verdade que as raparigas locais são tão destemidas quanto as habitantes de Dublin. E se, por isso, conseguiriam circular pela rua escassamente agasalhadas por mini-saias que Mary Quant venderia como cintos, num desafio estóico a temperaturas que namoram os zero graus.
Com a vista parcialmente obstruída pelo cachecol, pelo chapéu e pela gola da parca, não consegui cumprir este objectivo, embora, a partir do pouco que me foi dado avistar, tenha ficado desconfiado que é verdade. Mas fiquei a saber que os ventos cortantes que sopram do mar da Irlanda são fortes. O bastante, aliás, para fazerem uma pessoa ter frio nas pestanas e desejar estar a trabalhar para poder, não diria queimar, mas, pelo menos, aquecer as ditas.
Quanto aos lugares onde os Beatles deram os primeiros passos, a história é outra. Em observação escrupulosa dos conselhos sábios de quem dispõe de informação pantagruélica sobre a matéria em apreço, andei por Mathew Street a tentar identificar o aroma a cerveja, tabaco, mofo e calor humano que, ao que se diz, no início dos anos 60 do século passado denunciava quem tinha acabado de passar uma tarde e uma noite a escutar os “fab four” no interior do Cavern Club.
Não posso dizer que tenha sido bem sucedido. Em vésperas de Natal, as barracas instaladas nas ruas circundantes, em que se vendiam bratwurst, pizzas e waffles, tomavam conta do olfacto. E, como diz o velho ditado de Liverpool, “se não consegues detectar o odor a Cavern é porque estás constipado ou a precisar de uma cervejinha no The Grapes e outra no The White Star” [If you’re not feeling able to detect the Cavern Club typical smell, that’s because you’ve got a cold or, most probably, you’re in need of one pint of lager, or two, at The Grapes, and another one, or three, at The White Star].
Isto vinha mesmo a calhar porque, acabadinho de subir os degraus da réplica do clube histórico de Liverpool, estava com sede, consequência normal para quem bebe uma Coca-Cola numa cave onde se respira nostalgia, gás paralisante que exige antídotos mais potentes. No The Grapes, a cerveja foi escorregando durante o tempo suficiente para observar o “pub” e imaginar John, Paul, George e Ringo a cirandar por ali. No The White Star, a experiência foi semelhante. E, com isto, veio o impulso consumista, ou seja, estava na hora de sacudir a preguiça do cartão de crédito.
Em Liverpool, quem quiser desgraçar a conta bancária e ajudar a agravar o défice externo português tem pouca escolha. Mas quanto baste para sentir tremores de arrependimento quando o extracto salta do envelope com o sorrisinho cínico de quem gosta de cultivar a má consciência alheia. O Liverpool One ocupa seis quarteirões com uma arquitectura modernaça e tem praticamente tudo que o “money can buy”.
Para os fanáticos do futebol, até tem, praticamente lado a lado, lojas do Liverpool e do Everton, recheadas do tipo de lixo que, vendido a bom preço, deve ajudar a pagar exorbitâncias pelos craques que actuam nos dois clubes. E, felicidade, ainda há a loja dos Beatles. Ou, melhor, são três em toda a cidade, tanto quanto me consegui aperceber por entre as frinchas do cachecol.
Uma, situa-se em Mathew Street e está forrada de material. De porta-chaves a canecas, de discos a fotografias. Tudo ao molho e fé no Visa. Outra fica na esquina da mesma rua, junto ao Hard Day’s Night Hotel, edifício imponente nas suas colunas clássicas, merecedor de uma estadia por parte de quem não pense nas angústias do extracto antes de ele aterrar na caixa do correio e até ache graça à actividade de “fixing a hole” nas finanças.
Por último, há a loja da Beatles Story, na Albert Dock, onde as “t-shirts” que em Londres, Baker Street, são oferecidas em troca de 20 libras, podem aqui ser levadas para casa por metade do preço. Antes de uma volta de duas horas no Magical Mistery Tour, aproveitar a promoção “leve duas pelo preço londrino de uma” é uma boa solução para ajudar a passar o tempo enquanto o autocarro não chega. Isto, ou um hambúrguer rápido no Ha! Ha! Bar & Canteen para quem não tiver o azar de, após dez minutos de espera, ver a empregada aproximar-se, simpática, para afirmar que está desolada mas a carne de vaca acabou e ou é frango ou não é nada. Olha, “let it be”.
As casas onde os “fab four” viveram fazem parte dos momentos altos da volta pelos lugares relevantes na história da banda. E, também, a paragem junto ao portão de Strawberry Field ou a subida de Penny Lane até ao largo onde estão o barbeiro, a agência bancária e, até, o quartel dos bombeiros. Pelo caminho, talvez porque o autocarro está pintado como o que protagonizou o maior “flop” cinematográfico dos Beatles, as crianças que passam na rua acenam para os turistas com o sorriso de quem deve estar a pensar: “olha mais um grupo de totós” que vem para Liverpool quando podia estar nas Caraíbas. “Very strange”.
Um dia na vida pode terminar como qualquer outro. Ou não. No centro de Liverpool, onde a quantidade de terrenos baldios e de prédios devolutos compete com Lisboa, as ruas têm pouca gente mas os bares estão cheios. No Alma de Cuba, uma antiga igreja transformada em restaurante, é complicado chegar ao balcão e é ainda mais difícil arranjar mesa caso não se tenha feito reserva. Paciência. Enquanto se avia um aperitivo, consulta-se o guia para procurar alternativas. O “Il Forno” não fica longe e é recomendado. Está decidido. Ataca-se já um tagliatelle de salmão porque “tomorrow never knows” e já me está a apetecer comer “something”.
P.S. – Quando fui convidado a escrever para o Ié-Ié um texto com as minhas impressões sobre Liverpool, fiquei a pensar se não seria demasiado atrevimento aceitar o desafio.
Afinal de contas, escrever neste blogue sobre matérias que têm a ver com os Beatles é como mandar umas bocas sobre a lei de Lavoisier no blogue de um perito em físicaquântica. Mas, pronto, a ignorância é atrevida e, por isso, aqui fica o texto.
Colaboração de João Cândido da Silva
Porquê ir para esta cidade em pleno Dezembro, apanhar chuva e frio, duas manifestações de um clima impiedoso e impróprio para gastar um dia de férias? Porque ouvi dizer que havia por lá uma coisa bizarra. Uma piscina de fígados, junto ao rioMersey, a que a cidade devia o seu nome e que me garantiam a pés juntos constar num daqueles sapientes livros da Taschen como um dos 1001 locais que se devem ver na vida.
É tudo mentira. Na verdade, a segunda razão por que fui a Liverpool é porque se trata do berço dos Beatles, de que sou fã. A primeira é mais prosaica. Queria confirmar se era verdade que as raparigas locais são tão destemidas quanto as habitantes de Dublin. E se, por isso, conseguiriam circular pela rua escassamente agasalhadas por mini-saias que Mary Quant venderia como cintos, num desafio estóico a temperaturas que namoram os zero graus.
Com a vista parcialmente obstruída pelo cachecol, pelo chapéu e pela gola da parca, não consegui cumprir este objectivo, embora, a partir do pouco que me foi dado avistar, tenha ficado desconfiado que é verdade. Mas fiquei a saber que os ventos cortantes que sopram do mar da Irlanda são fortes. O bastante, aliás, para fazerem uma pessoa ter frio nas pestanas e desejar estar a trabalhar para poder, não diria queimar, mas, pelo menos, aquecer as ditas.
Quanto aos lugares onde os Beatles deram os primeiros passos, a história é outra. Em observação escrupulosa dos conselhos sábios de quem dispõe de informação pantagruélica sobre a matéria em apreço, andei por Mathew Street a tentar identificar o aroma a cerveja, tabaco, mofo e calor humano que, ao que se diz, no início dos anos 60 do século passado denunciava quem tinha acabado de passar uma tarde e uma noite a escutar os “fab four” no interior do Cavern Club.
Não posso dizer que tenha sido bem sucedido. Em vésperas de Natal, as barracas instaladas nas ruas circundantes, em que se vendiam bratwurst, pizzas e waffles, tomavam conta do olfacto. E, como diz o velho ditado de Liverpool, “se não consegues detectar o odor a Cavern é porque estás constipado ou a precisar de uma cervejinha no The Grapes e outra no The White Star” [If you’re not feeling able to detect the Cavern Club typical smell, that’s because you’ve got a cold or, most probably, you’re in need of one pint of lager, or two, at The Grapes, and another one, or three, at The White Star].
Isto vinha mesmo a calhar porque, acabadinho de subir os degraus da réplica do clube histórico de Liverpool, estava com sede, consequência normal para quem bebe uma Coca-Cola numa cave onde se respira nostalgia, gás paralisante que exige antídotos mais potentes. No The Grapes, a cerveja foi escorregando durante o tempo suficiente para observar o “pub” e imaginar John, Paul, George e Ringo a cirandar por ali. No The White Star, a experiência foi semelhante. E, com isto, veio o impulso consumista, ou seja, estava na hora de sacudir a preguiça do cartão de crédito.
Em Liverpool, quem quiser desgraçar a conta bancária e ajudar a agravar o défice externo português tem pouca escolha. Mas quanto baste para sentir tremores de arrependimento quando o extracto salta do envelope com o sorrisinho cínico de quem gosta de cultivar a má consciência alheia. O Liverpool One ocupa seis quarteirões com uma arquitectura modernaça e tem praticamente tudo que o “money can buy”.
Para os fanáticos do futebol, até tem, praticamente lado a lado, lojas do Liverpool e do Everton, recheadas do tipo de lixo que, vendido a bom preço, deve ajudar a pagar exorbitâncias pelos craques que actuam nos dois clubes. E, felicidade, ainda há a loja dos Beatles. Ou, melhor, são três em toda a cidade, tanto quanto me consegui aperceber por entre as frinchas do cachecol.
Uma, situa-se em Mathew Street e está forrada de material. De porta-chaves a canecas, de discos a fotografias. Tudo ao molho e fé no Visa. Outra fica na esquina da mesma rua, junto ao Hard Day’s Night Hotel, edifício imponente nas suas colunas clássicas, merecedor de uma estadia por parte de quem não pense nas angústias do extracto antes de ele aterrar na caixa do correio e até ache graça à actividade de “fixing a hole” nas finanças.
Por último, há a loja da Beatles Story, na Albert Dock, onde as “t-shirts” que em Londres, Baker Street, são oferecidas em troca de 20 libras, podem aqui ser levadas para casa por metade do preço. Antes de uma volta de duas horas no Magical Mistery Tour, aproveitar a promoção “leve duas pelo preço londrino de uma” é uma boa solução para ajudar a passar o tempo enquanto o autocarro não chega. Isto, ou um hambúrguer rápido no Ha! Ha! Bar & Canteen para quem não tiver o azar de, após dez minutos de espera, ver a empregada aproximar-se, simpática, para afirmar que está desolada mas a carne de vaca acabou e ou é frango ou não é nada. Olha, “let it be”.
As casas onde os “fab four” viveram fazem parte dos momentos altos da volta pelos lugares relevantes na história da banda. E, também, a paragem junto ao portão de Strawberry Field ou a subida de Penny Lane até ao largo onde estão o barbeiro, a agência bancária e, até, o quartel dos bombeiros. Pelo caminho, talvez porque o autocarro está pintado como o que protagonizou o maior “flop” cinematográfico dos Beatles, as crianças que passam na rua acenam para os turistas com o sorriso de quem deve estar a pensar: “olha mais um grupo de totós” que vem para Liverpool quando podia estar nas Caraíbas. “Very strange”.
Um dia na vida pode terminar como qualquer outro. Ou não. No centro de Liverpool, onde a quantidade de terrenos baldios e de prédios devolutos compete com Lisboa, as ruas têm pouca gente mas os bares estão cheios. No Alma de Cuba, uma antiga igreja transformada em restaurante, é complicado chegar ao balcão e é ainda mais difícil arranjar mesa caso não se tenha feito reserva. Paciência. Enquanto se avia um aperitivo, consulta-se o guia para procurar alternativas. O “Il Forno” não fica longe e é recomendado. Está decidido. Ataca-se já um tagliatelle de salmão porque “tomorrow never knows” e já me está a apetecer comer “something”.
P.S. – Quando fui convidado a escrever para o Ié-Ié um texto com as minhas impressões sobre Liverpool, fiquei a pensar se não seria demasiado atrevimento aceitar o desafio.
Afinal de contas, escrever neste blogue sobre matérias que têm a ver com os Beatles é como mandar umas bocas sobre a lei de Lavoisier no blogue de um perito em físicaquântica. Mas, pronto, a ignorância é atrevida e, por isso, aqui fica o texto.
Colaboração de João Cândido da Silva
Um belo texto, com sentido de humor
ResponderEliminare que deu para visualizar um percurso em Liverpool, á procura do
rasto, já apagado, dos "FabFour".
Pedindo desculpa por desviar este formidável texto para sul, na direcção de Londres, em face da superveniente notícia da qualificação da "zebra" de Abbey Road em património histórico britânico.
ResponderEliminarÉ a primeira vez, e talvez a única, na história universal, que uma "zebra" vira património histórico.
Só mesmo os Beatles.
Agora "Abbey Road" sem "The End"
Mais detalhe na BBC em :
ttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/12/101222_abbeyroad_pu.shtml
JR
Magnífico texto, melhor do que brochuras turísticas. Dá vontade de visitar a cidade, mesmo com frio.
ResponderEliminarLM
Excelente Texto...Liverpool ATÉ FICA MELHOR COM ESTA MAGICAL MYSTERY TOUR.
ResponderEliminarbRILHANTE!
ResponderEliminarO "atrevimento" valeu a pena, João Cândido. Bela crónica!
ResponderEliminarE para essa motivação de trocar as Caraíbas por Liverpool, em vez de "very strange", de "Penny Lane", eu escolheria "Love is Strange", que os Everly Brothers imortalizaram e os Beatles adoraram.
E os Wings gravaram...
ResponderEliminarLT
Gostava de duas coisas que o autor deste texto já tem!
ResponderEliminarEscrever assim, e também ir a Liverpool fazer este roteiro.
Ir a Liverpool até pode ser que calhe, um dia quem sabe?
A outra já não vai dar!...
Texto que não dá para deixar ficar a meio, de tão bem escrito que está.
Parabéns!
Boas Festas!
Eu sei, Ié-Ié... "Wild Life"...
ResponderEliminarBelo texto, a deixar-me ainda com mais àgua na boca para a tão desejada visita a Liverpool.
ResponderEliminarboa joaozinho!
ResponderEliminarestou a ver que a visita foi bem aproveitada, apesar de deixares os primos em terra a pensar na grande festa dos 50!!!!!